1. INTRODUÇÃO
Tenho enorme dificuldade em compreender o porquê do envio à Assembleia da República por parte do Governo de um pedido de alteração a uma legislação (Lei nº 40/2012 de 28 de Agosto) onde, nada de substancial, é alterado.
De facto o “regime de acesso e exercício da actividade de treinador de desporto”1 actualmente em vigor nada tem provado no sentido da melhoria efectiva da qualidade do treino ou dos conhecimentos actualizados dos treinadores pelas melhores práticas internacionais. Urge modificá-lo: nos conceitos e nos objectivos.
Para além de uma hierarquização dos níveis de treinadores e do estabelecimento dos conhecimentos mínimos de acesso, o actual sistema nada garante que realmente fomente e favoreça a aquisição de conhecimentos gerais e específicos que garantam competência técnica e profissional na área da intervenção profissional”2. Pelo contrário, querendo ser tudo, mistura conceitos3, impõe absurdos4 e fomenta abusos — já sem falar no facto de esquecimento de uma exigência preventiva elementar para quem trabalha com crianças: o registo criminal. Ou da frequência obrigatória de um curso de primeiros socorros.
Claro que deve haver demonstração de competências para o acesso aos diferentes níveis mas o sistema criado, ao transformar treinadores — tanto os recém-chegados como os experientes e com mais do que resultados demonstrados — em estudantes compulsivos não favorece o seu “aperfeiçoamento qualitativo” e levará a uma cada vez menor apetência pelo acesso à carreira.
Porque, lembre-se, raras são as possibilidades de uma carreira de treinador autónoma — a maior parte dos treinadores têm (porque materialmente obrigados) dupla profissão, a designada “carreira dual”5. E este sistema pretende uma tripla carreira dividida entre o tempo de treino e da sua preparação, o tempo de estudos e pesquisa de acordo com as necessidades de desenvolvimento específicos da modalidade, da equipa e dos seus jogadores a que obrigam a acrescentar ainda o tempo da procura de créditos para garantir a manutenção da certificação. Ora isto é absurdo e representa um abuso do qual nada garante de criação ou acrescento de valor.
Sabe-se de fonte segura: a mais importante componente da aprendizagem realiza-se informalmente. E a que mais aprofunda conhecimentos é, através da informalidade, impressiva e idiossincrática que formam o conjunto do que vai permitir a investigação e a inovação. Ou seja: cada um procura o que melhor lhe serve e quando não encontra pesquisa ou pergunta a outro que saiba6. Até que encontra os elementos que, produzindo conhecimento, lhe permitem transformar e saber.
Hoje em dia a internet possibilita o acesso a estudos realizados nos mais diversos domínios da prática e desenvolvimento desportivos, possibilitando ainda o acesso directo a conferências ou debates entre conhecedores profundos das diversas matérias. É só ter o cuidado de escolher! E esta escolha, assinalando a qualidade, deveria ser ajudada, no método e na forma, pelas entidades desportivas que pretendem a melhoria do treino desportivo, nomeadamente pelas federações.
A aprendizagem formal esgota-se nos conhecimentos considerados absolutamente necessários para possibilitar o início da prática profissional. A partir daí, a necessidade do conhecimento e matérias de estudo e actualização pertencem a cada um na certeza porém de que os exames públicos semanais a que os treinadores estão sujeitos depressa expõem as vulnerabilidades de quem se deixou atrasar.
Mas a necessidade de um treinador se manter actualizado com as metodologias de treino, as organizações competitivas, os regulamentos, as leis do jogo, as formas mais adequadas de alimentação, as implicações de usos e costumes nos níveis das formas desportivas, etc., etc. não justificam a imposição programática de uma formação. O direito à liberdade de escolha dos treinadores é geral. E se os responsáveis dos clubes podem, esses sim porque têm a responsabilidade dos membros das suas equipas, exigir uma determinada formação particular dentro do quadro desportivo em causa — ao Estado cabe apenas a exigência dos mínimos que não ponham socialmente em causa a prestação de um serviço. Aliás o conjunto de especialidades necessárias para a formação de uma equipa técnica responsável por um atleta ou equipa desportiva de rendimento se exige um mínimo de conhecimento sobre a importância de cada especialidade para que o recurso seja efectivo, não impõe nenhum estudo qualificado sobre o assunto: basta saber que, para a matéria, existe um especialista para ser consultado.
Portanto este sistema não é transformador, não promove a descoberta e apenas impõe a vontade do controlador, representando uma visão estacionária e conservadora. Mas determinada na sua imposição de poder.
2. O ABUSO DO ENQUADRAMENTO
O diploma em causa é abusivo, viola o direito e o respeito profissional e demonstra ignorância sobre a actividade de treinador.
A exigência da “formação contínua obrigatória”, não fazendo, por abusivamente impositiva, qualquer sentido — qual é a Ordem profissional que tem obrigatoriedade de formação contínua? — também não contribui para qualquer acréscimo de valor e apenas serve para fazer diminuir o número de treinadores com experiência, estabelecendo ainda — num tratamento idêntico para o que poderá ser diferente — a “correspondência de unidades de crédito com as horas de formação” e “o número mínimo de unidades de crédito” obrigatórias no somatório redentor.
Por outro lado a existência de “formação contínua obrigatória” ao contrário da pia intenção de impôr conhecimentos — que de facto ficarão ao critério dos grandes beneficiários do sistema que são as organizações de formadores — não é garante de qualidade. A qualidade vem da existência e possibilidade de acesso a “formações” que, por não serem obrigatórias, têm que ser interessantes e capazes de transmitir conhecimentos actualizados que traduzam um verdadeiro acréscimo de valor para os frequentadores — é, aliás, assim que as formações profissionais enchem salas de interessados. O valor da formação não pode estar nos créditos — como este regime preconiza — mas nos conteúdos transmitidos e o treinador, como qualquer outro profissional, tem direito à liberdade da sua escolha para a construção da sua carreira.
Deveria, ao contrário do que demonstra, a preocupação governamental centrar-se na exigência de que os organismos desportivos proporcionassem aos treinadores estágios, cursos, conferências, etc. que lhes permitissem as actualizações necessárias à eficácia dos seus propósitos e métodos. Porque na forma obrigatória actual as vantagens do sistema concentram-se no interesse dos formadores e não nas necessidades do verdadeiro desenvolvimento desportivo.
A vida profissional de um treinador relaciona-se com os resultados, sejam eles desportivos ou formativos e o aumento de conhecimentos que lhes permitam o domínio do saber no seu campo de intervenção deve ser a preocupação maior de quem tem como obrigação preocupar-se com a melhoria qualitativa do Desporto português.
3. ABUSO INADMISSÍVEL
Não satisfeito com esta imposição de conhecimentos que alguém sentado atrás de uma secretária entende como importantes para o exercício profissional, este regime impõe a sanção maior e manifestamente desajustada — espécie de pena de morte — ao decidir fazer caducar a certificação profissional obtida e utilizada durante anos7 se o treinador não frequentar as ditas acções de “formação contínua” sejam eles treinadores que nunca exerceram a profissão ou que a exerceram durante anos, plenos de experiência e de resultados efectivos. Chama-se a isto desperdício de conhecimento e experiência sem outro resultado que não seja a diminuição do número de treinadores disponíveis.
Porque as competências estão adquiridas e experimentadas e não podem ser deitadas a um qualquer caixote do lixo por imposição de um qualquer burocrata de secretária zelador do seu poder.
Impedir o exercício profissional seja a quem fôr é competência dos tribunais; aos organismos profissionais compete apenas a autoridade disciplinar limitada.
Retirar a certificação profissional de treinador representa uma violação do Estado de Direito e contraria os princípios Republicanos da nossa Democracia e, como tal, deve ser retirada sem qualquer margem para dúvidas.
4. O EXAGERO E A CONFUSÃO.
O diploma ao estabelecer o que considera “Praticantes de elevado nível”8 estabelece, numa óbvia confusão prática, metas temporais desajustadas e não equiparáveis. A terminologia utilizada deveria ser substituída por “Atletas de Alto Nível” ou por um mais adequado, pela sua relação com o estatuto existente, “Atletas de Alto Rendimento”. O termo praticante é demasiado genérico sendo aplicável a qualquer pessoa que pratique uma qualquer modalidade sem que isso signifique que se encontra inserida na área Desporto e não deve ser utilizado neste enquadramento.
Estar “inserido numa liga profissional”9 não tem a mesma equivalência do que ter estado inserido no “regime de alto rendimento”10 ou que “tenham representado a selecção nacional do escalão absoluto”11. Estas forçadas equivalência apostam ainda num mesmo tempo de “oito anos” — 3 anos a representar uma selecção nacional, com o numero de jogos internacionais anuais que existem hoje em dia, proporciona uma experiência superior e permite retirar conhecimentos inigualáveis por outro processo. Oito anos?! dos 23/24 anos aos 31/32?! Esta exigência não faz qualquer sentido e não constitui qualquer incentivo para o aproveitamento da experiência acumulada. Por outro lado o que significam competições “que conferem o título nacional, em cada país, da respectiva modalidade”12?. Em Portugal o costume determina que existem títulos nacionais atribuídos em todas as divisões — campeão nacional da I divisão ou campeão nacional da II divisão, etc. O que se pretende com esta redação? Confusão como resultado, pela certa.
No caso dos jogadores internacionais a métrica mais adequada deverá ser, muito provavelmente, o número de internacionalizações.
CONCLUSÃO
Este regime que agora o Governo propõe pouco difere do regime anterior e mantém os pontos gravosos e prejudiciais ao desenvolvimento qualitativo e digno do exercício da profissão para além de manter a confusão habitual de conceitos.
Acima de tudo o novo regime nada aprendeu sobre as consequências negativas resultantes do regime anterior, tão pouco se terá apercebido da diminuição do número de treinadores por não terem atingido os créditos exigíveis. O facto é este: após cinco anos de exercício do regime que agora o Governo pretende alterar não existe nenhuma evidência que a qualidade dos treinadores se alterou positivamente pelo sua aplicação. Mas nada se aprendeu ou procurou aprender dos resultados do regime utilizado.
E não se aprendeu ao ponto de se manter o conceito de “formação contínua obrigatória” a que se junta o duvidoso somatório de créditos sem perceber, por um lado, o carácter abusivo da imposição de domínios de conhecimento num dirigismo de má memória. Mas pior do que tudo é o facto, completamente inadmissível, repete-se, num Estado de Direito, de manter a abusiva e ditatorial possibilidade de fazer caducar um título profissional, eventualmente carregado de experiência, conhecimento e resultados, por o seu titular não ter frequentado as “acções de formação contínua nos termos definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área do desporto.”13
Os treinadores, com a dependência que têm de resultados formativos ou desportivos, têm que estudar, manter-se actualizados e preparados para a tarefa profissional que desempenham não tendo — se pretendem singrar na carreira e com os exames públicos semanais a que estão sujeitos — mesmo outra hipótese, mas mantêm o direito, ultrapassada que seja a fase de acesso inicial à carreira, de decidir o que pretendem estudar e qual o perfil que desejam construir para a sua carreira.
Face ao exposto considera-se que a Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto da Assembleia da República deverá devolver ao Governo a Proposta de Lei nº146/XIII com a recomendação, para além de utilizar uma linguagem conceptual mais clara e menos confusa, de alterações profundas nos seguintes pontos:
— terminar com a obrigatoriedade da formação contínua que deve passar a ser de escolha livre e não sujeita ao utilitarismo dos créditos mas sim ao interesse dos conteúdos formativos para a carreira de cada treinador;
— adequar, no tempo e no modo, a definição de “Praticantes de alto nível” à realidade das diferenças existentes nas diversas práticas consideradas, nomeadamente, no tempo necessário, que deve ser reduzido, dos jogadores internacionais;
— eliminar definitivamente e sem margem para dúvidas a possibilidade administrativa de fazer caducar o título profissional.
1 Proposta de Lei nº 146/XIII
2 Alínea b), Ponto 2 do Artigo 2º, Objectivos
3 Exemplo: Alínea b), Ponto 1 do Artigo 2º —“A defesa da saúde e da segurança dos praticantes, bem como a sua valorização a nível desportivo e pessoal, quer quando orientados para a competição desportiva quer quando orientados para a participação nas demais atividades desportivas.” A 2ª parte da alínea só cria confusão…
4 Alínea b), Ponto 2, doArtigo 2º — “Impulsionar a utilização de instrumentos técnicos e científicos, ao longo da vida, necessários à melhoria qualitativa da intervenção no sistema desportivo;” e porque é que este impulsionar impõe a imposição de determinado tipo de formação?
5 Artigo 10º — C
6 “Para onde vais? Vou estagiar 15 dias com fulano” é um sistema habitual de formação informal de que resulta um acumular de conhecimentos que podem ser utilizados com bom proveito.
7 Ponto 2 do Artigo 8º — “O título profissional caduca sempre que o seu titular não frequente, no período de três anos, ações de formação contínua nos termos definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área do desporto.”
8 Artigo 10º—B
9 Ibidem
10 Ibidem
11 Ibidem
12 ibidem
13 Ponto 2, Artigo 8º já citado