quarta-feira, 24 de junho de 2020

EVIDÊNCIAS DA CIDADE PANDÉMICA

A pandemia do covid-19 trouxe à evidência o que já devíamos saber sobre a Cidade: a Cidade sem residentes não tem vida!

   

Ao deixarmos, sem contestação nem preocupações visíveis, que a Cidade se transformasse num espaço especulativo pelas vantagens dadas a compradores estrangeiros do imobiliário e abrindo as portas de par-em-par ao “exército de ocupação” formado por milhares de turistas de 2/3 dias que, fazendo tábua-rasa das culturas e hábitos locais, impõem o momentâneo das suas regras expulsando habitantes de anos, sectoralizando empregos, uniformizando funções, zonificando a Cidade que, como agora nos apercebemos, ficou vazia. Sem pessoas. Porque os ricos proprietários estrangeiros não vivem cá e porque os turistas dos infindáveis e abusadores alojamentos locais — alegremente transformados em reabilitações da Cidade — não apareceram. Deslumbrada com a aceitação internacional, a Cidade deixou-se transformar num espaço de ganância especulativa, elevando os seus preços e, na desproporção das condições criadas, desleixou os cuidados protectores devidos aos seus. A uns porque os expulsou, a outros porque lhes retirou a sobrevivência ao impedir o ganho diário do pão que comem à noite. 


E os citadinos, expulsos para periferias desconhecidas, foram carpir as suas mágoas e desalentos da má-sorte de desprotegidos para fora das nossas vidas de confinados privilegiados. E pouco mais tendo do que a solidariedade de uns quantos para lhes amenizar as agruras.


Ao longo dos últimos anos, por desatenção indesculpável, a Cidade transformou-se: perdeu habitantes, perdeu habitação, perdeu relações de vizinhança, perdeu orgulho de pertença. Perdeu-se, perdendo assim o seu valor de cidadania. E perversamente mostra-se como uma “casa de bonecas” para efeito turístico.  


A pandemia veio agora, na imagem das ruas desertas cercadas das diversas arquitecturas que marcam a Cidade, pôr a nu as suas debilidades e impedir-nos a cegueira da ignorância do facto: a Cidade não cumpre a sua obrigação! A Cidade não é o lugar que nos garante as condições de vida desejáveis e necessárias. Porque a Cidade não é a edificação que lhe molda as formas mas sim as pessoas que a articulam, a transformam e lhe garantem a habitabilidade urbana. E essas, não estão!

  

E, se nada fizermos, a Cidade enquanto lugar de encontro, de invenção, de troca, de cultura, de solidariedade, de bem-estar, de inclusão, não o será mais.


Iniciado o desconfinamento, todos os que vivem nos subúrbios e dependem do que resta de empregos urbanos, transbordam — nada que seja novidade — em transportes colectivos insuficientes e onde a impossibilidade do distanciamento físico aumenta o risco de contágio, transformando estes transportes no melhor amigo da continuidade pandémica.


Que podemos fazer perante este desequilíbrio social e funcional que percebemos crescente? Muito!


Primeiramente recusando começar pelo fim da linha, apresentando modismos como soluções para os problemas que nos envolvem. Problemas que são muito mais do que formais e que pertencem ao domínio dos valores e direitos da cidadania.


Antes do mais e como objectivo fundamental a Cidade precisa de voltar à sua essência: a Cidade precisa de mais residentes, ponto! E este é o conceito que deve nortear todas as acções a desenvolver. O que, embora não se fazendo de um dia para o outro, nada impede de ser bem pensado desde já. Evitando recorrer a soluções gastas e de duvidoso resultado que já demonstraram a sua ineficácia. 


Antes do mais a Cidade precisa de minorar a actual situação do tempo bi-diariamente perdido nas deslocações casa/trabalho. Aumentando a acessibilidade ao direito à habitação e procurando garantir o exercício igualitário de viver na cidade onde se trabalha. O que levará o seu tempo, percebe-se…


Mas desde já, algumas acções de carácter imediato são possíveis — aproximar os deslocados da Cidade dos seus empregos, ajudar à contenção infecciosa e preparar o futuro. E se a diminuição do tempo de deslocação não é imediata, é possível a diminuição do tempo de espera e a melhoria do conforto, introduzindo definitivamente o conceito de horários laborais desfasados, permitindo que menos gente se desloque ao mesmo tempo. E poderemos ainda diminuir o número destes torna-viagem contemporâneos se mantivermos o sistema de teletrabalho.


Horários laborais desfasados e continuidade do teletrabalho são portanto medidas necessárias e urgentes.

E, simultaneamente, trabalhar para que o retorno de residentes se faça com a criação de “habitats urbanos” — aquilo a que já se deu o nome de “unidades de vizinhança” — dessectoralizando a Cidade e derrotando a gentrificação com a mistura social e funcional. Misturando tudo e todos, trazendo de novo à liça os conceitos dos anos sessenta de Jane Jacobs e de “A Cidade não é uma árvore” de Christopher Alexander para permitir o desenvolvimento urbano dos 3 Tês de Richard Florida e garantir a atractividade criativa de Tecnologias, do Talento e da Tolerância. 


Cidades europeias já iniciaram este percurso. Barcelona com o seu programa de “supermanzanas” procura, diminuindo tempos de deslocação, aproximar as necessidades urbanas quotidianas dos residentes da sua habitação e a que junta ainda a possibilidade de utilização de um superalgoritmo de pesquisa de preferências e interesses próprios dos moradores, começando assim a preparar o futuro.


Em Paris, com base em seis razões de uma urbanidade equitativa como são habitação digna, trabalho em decentes condições, facilidades de abastecimento, bem-estar, educação e divertimento nos tempos livres, foi lançado o programa municipal “Paris do 1/4 de Hora”. Um programa a aplicar em toda a Cidade e com o  objectivo de garantir que a 15 minutos de casa, cada parisience irá ter um fácil acesso — a pé ou de bicicleta — às necessidades do seu quotidiano, não só de trabalho, de escola ou de abastecimento mas também de ocupação activa de tempos livres para si, seus filhos ou netos. Isto é: a Cidade deixará para trás os seus sectores monofuncionalizados, do “aqui vivo, ali trabalho e além ocupo os meus tempos livres” para reduzir o tempo de acesso, aumentar a entre-ajuda e o sentimento de pertença, garantindo assim uma real melhoria de condições de habitabilidade e de vida.  


A oportunidade de que agora se fala em Portugal de possíveis programas de habitação, deve ser vista, acima de tudo, como uma efectiva oportunidade para os portugueses verdadeiramente necessitados de acesso a uma habitação digna. Priorizar o Direito à Habitação sobre a gentrificação turística resulta desta perspectiva e que é obrigatório executar. A nós Arquitectos, exige-se a demonstração de capacidades e competências que permitam criar a habitabilidade exigível no quadro de uma urbanidade equitativa e integrável no amplo e complexo movimento da Cidade.


[publicado in Público Opinião Habitação e Urbanismo, 20 de Junho de 2020]

sábado, 6 de junho de 2020

A COVID-19 E O DESPORTO: UMA GUERRA PELA SOBREVIVÊNCIA

A pandemia do COVID-19 para além do rasto de morte que tem deixado — muito por culpa de políticos eugenistas, diga-se — está também a deixar de pantanas o Desporto, essa actividade que obriga a preparação cuidada e intensa numa base científica e que exige competição na procura da superação pelo rendimento do melhor resultado enquadrado na rota de excelência e do reconhecimento do mérito. A questão é de vista desarmada: logo que seja possível um depois, como vai ser? Que retorno vai haver depois das forçadas paragens em que o tempo foge definitivamente a uns e intervala demasiado para outros? Como recuperar? O que acontecerá às modalidades colectivas limitadas ao jogo executado por memórias distantes e impedidas de ampliar a determinante coesão técnica, táctica, estratégica dos seus elementos?

Se para as modalidades individuais, mesmo com a brutal falta de calendarização conhecida que permita uma periodização de treinos objectiva e adequada, ainda é possível uma manutenção da preparação em nível razoavelmente elevado, para os desportos colectivos o necessário distanciamento físico — e não social que desse houve e há num fartote quotidiano de diversas formas comunicativas — impede tudo aquilo que cada modalidade obriga. E não se pense que é apenas o Rugby, desporto colectivo de combate onde a conquista de terreno se faz num palmo de respiração comum, que é incompatível com a actual pandemia — olhe-se para o Vólei que se diz seguro porque tem uma rede a impedir contactos e que, afinal, não separa a respiração conjunta de um rematador contra um bloco de dois ou três adversários. Já o treino do atletismo em pista é possível com separações de 10 metros se em perseguição ou de dois corredores se lado a lado — e à velocidade mais próxima possível do exigido no alto nível competitivo.

Durante uns meses as modalidades colectivas ficarão limitadas a uma competição onde apenas participará um reduzido grupo de atletas do alto nível e sujeitos a regras de controlo constante, de enorme exigência e verificáveis antes de cada jogo. Jogo que se disputará, por falta do melhor entendimento das coisas, na frente do betão ou de truques a mascarar a verdade das bancadas vazias. É o que vemos no actual retorno do futebol português.

Aos adeptos da modalidade ou das equipas restará — teoricamente porque na prática a ver vamos — o sofá de casa ou um espaço comum de grupos de 20 na frente de um ecrã gigante de televisão ou virados uns para os outros, num faz de conta emocional, a lançar gritos de ânimo ou desânimo que os jogadores jamais darão conta. Mas, num golo transmitido por terceiros, saltos e abraços pela emoção colectiva que afirma o sentimento de pertença, não. Serão jogos que, para actores e espectadores, vão ter o sabor insonso das coisas por obrigação, mesmo que se comentem as vitórias e as derrotas sob o eterno prisma do mesmo culpado de sempre.

Os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 já foram atirados para 2021 na quase certeza de que não serão realizados em terras japonesas porque um novo adiamento será quase inevitável uma vez que, ao que se sabe, não haverá vacinas em tempo útil para permitir a necessária preparação dos atletas e para o controlo dos milhares de visitantes que chegariam de toda a parte do mundo. A isto junte-se o aumento da desigualdade conhecida das possibilidades preparatórias de ricos e pobres com um desequilíbrio a aumentar muito entre uns e outros, entre aqueles que tiveram acesso às prevenções em tempo útil e aqueles que conseguiram, num resvés de aflitos, apresentar-se limpos de suspeitas infecciosas. E tudo numa mais que provável desvalorização de resultados. Porque a inexistência de factores de risco para os grupos etários jovens, nomeadamente para o grupo de 20/29 anos, dito saudável e ao qual pertencem a maior parte dos atletas não passa de um mito — veja-se o caso português para dados de 31/5/2020: o grupo etário 20/29 representa 13,3% da totalidade de infectados para 7,9% de infectados no grupo etário 70/79. Ou seja: o jovem grupo etário de 20/29 anos, não tendo praticamente qualquer risco de letalidade, constitui um risco enquanto grupo transmissor da infecção. O que exigirá cuidados especiais e testáveis para que seja possível iniciarem as suas práticas desportivas competitivas.

No fundo, os modelos de referência que atraem e seduzem e que estão na base da sequência circular da substituição rejuvenescida estarão longe do seu melhor, atraindo menos e abrindo espaços para outras naturezas que, insidiosas, se apoderarão do vazio com promessas de fácil atractividade e com apostas seguras, sem riscos aparentes ou dificuldades de acesso.

Vai ser assim: por culpa daqueles que insistem em dar o nome de Desporto a tudo que mexe, ignorando as diferenças para a actividade física ou para o mero lazer de movimento e que insistem quer na sua insofismável e absoluta visão salutar, quer na dificuldade de entender que a importância do “Desporto para Todos” se centra, acima de tudo, na preocupação pelo direito de acesso à prática desportiva competitiva por culturas de diferentes raças, religiões ou costumes, o  e-sports, mexendo os olhos e os dois polegares, aí estará, com toda a naturalidade que possa aparentar nomeadamente mostrando a moralidade de preocupações anti-dopagem que usará como suas, para ocupar, com a sua enorme capacidade financeira, o vazio que ficará no buraco desta pandemia.

E se não houver percepção de que existem novas e diferentes exigências para salvaguarda do Desporto, preparando novos processos estratégicos de implementação e de acesso a apoios governamentais específicos, perder-se-ão, para além da importância da complexidade do seu modelo, as características do Desporto que definem o seu enorme valor social: integração, excelência, mérito
.
Como em tudo o resto na vida, o Desporto que conhecemos pode, por ignorância, equívoco ou distração, não ser para sempre. E o outro dito desporto que nos espera, o e-sports, viverá pelas vistas curtas de manutenção de uma ignorante mistificação primária: que o elemento central do Desporto é a Juventude.

(publicado na Tribuna Expresso, Opinião, Comité Olímpico de Portugal, 05/06/2020)


Arquivo do blogue

Seguidores