sábado, 7 de abril de 2018

ARQUITECTURA POR ARQUITECTOS (3)

O Presidente da República vetou o diploma que permite que engenheiros civis assinem projectos de Arquitectura alegando que, não se conhecendo facto novo, não se justifica alterar "uma transição no tempo para uma permanência da excepção, nascida antes do 25 de abril."

Esta posição presidencial, se vem ao encontro do que a Ordem dos Arquitectos sempre defendeu, corresponde também à posição publicamente expressa, em diferentes ocasiões, pelo Presidente da Assembleia da República e pelo Primeiro-Ministro - ambos se mostraram contra a proposta de lei, Ferro Rodrigues exprimindo, alto e bom som, o seu voto contra e António Costa, expressando a sua posição - "mais nenhuma outra profissão, por muito útil que seja à construção, substitui a mão, o desenho e o saber único que só um arquitecto sabe ter." - na intervenção realizada na inauguração da Casa da Arquitectura em Matosinhos.

Retirado do site da Presidência da República, reproduz-se, o texto explicativo do veto:

“Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
1. O Decreto da Assembleia da República n.º 196/XIII, de 3 de abril de 2018, vem alterar a Lei n.º 31/2009, de 3 de julho, que aprovou um regime jurídico estabelecendo a qualificação profissional exigível aos técnicos responsáveis pela elaboração e subscrição de projetos, pela fiscalização de obra e pela direção de obra, revogando legislação nomeadamente de 1973 e estabelecendo um regime transitório de 5 anos para certos técnicos.
2. Pela Lei n.º 40/2015, de 1 de junho, foi permitido aos referidos técnicos prosseguirem a sua atividade transitoriamente por mais 3 anos.
3. O diploma ora aprovado pela AR, sem que se conheça facto novo que o justifique, vem transformar em definitivo o referido regime transitório, aprovado em 2009 depois de uma negociação entre todas as partes envolvidas, e estendido em 2015, assim questionando o largo consenso então obtido e constituindo um retrocesso em relação àquela negociação, alterando fundamentalmente uma transição no tempo para uma permanência da exceção, nascida antes do 25 de abril.
4. Nestes termos, decidi devolver à Assembleia da República, sem promulgação, nos termos do Artigo 136º, n.º 1 da Constituição, o Decreto n.º 196/XIII, de 3 de abril de 2018, que procede à segunda alteração da Lei n.º 31/2009, de 3 de julho, que aprova o regime jurídico que estabelece a qualificação profissional exigível aos técnicos responsáveis pela elaboração e subscrição de projetos, pela fiscalização de obra e pela direção de obra, que não esteja sujeita a legislação especial, e os deveres que lhes são aplicáveis, e à primeira alteração à Lei n.º 41/2015, de 3 de junho, que estabelece o regime jurídico aplicável ao exercício da atividade da construção.
Marcelo Rebelo de Sousa”
Como Arquitecto - inscrito na Ordem dos Arquitectos com o nº 724 e membro eleito da sua Assembleia de Delegados - e também como cidadão, agradeço, naturalmente, a posição do Presidente da República, dr. Marcelo Rebelo de Sousa.

[Clicando aqui pode ter-se acesso à carta do Presidente da República dirigida ao Presidente da Assembleia da República]

quinta-feira, 5 de abril de 2018

VIOLÊNCIA NO DESPORTO NA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA

A Assembleia da República, através da sua Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto a que se juntou a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, realizou, na Sala do Senado, uma Conferência Parlamentar subordinada ao tema “Violência no Desporto” com duração de um dia e organizada em torno de três painéis: Painel 1 - A violência no Desporto vista pelas organizações do fenómeno desportivo; Painel 2 - A Justiça e a violência no Desporto; Painel 3 - Violência no Desporto: que papel para a Comunicação Social. A sessão terminou com intervenções dos representantes dos Grupos Parlamentares que constituem a Assembleia da República.
Pese a densidade do número de horas, o domínio do tema era suficientemente interessante para me fazer estar presente. E ouvi do primeiro ao último minuto.
A minha primeira anotação foi de estranheza. 
A estranheza - anotada também pelo conferencista Presidente da Confederação Portuguesa do Desporto de Portugal - surge no enunciado que deu nome à conferência. A violência que se pretendia escalpelizar, não está no Desporto, isto é, no domínio do confronto que lhe é próprio e  que, nesta matéria, tem a sua auto-regulação eficazmente estabelecida, mas sim na sua envolvente, isto é, nas componentes que transformam o Desporto em Espectáculo Desportivo. E para a compreensão deste equívoco que trata faces diferentes da totalidade de um fenómeno que tem raízes distintas, vale a pena lembrar a intervenção do Presidente do Comité Olímpico de Portugal que, já depois de uma excelente e esclarecedora intervenção sobre o tema geral, muito bem definiu, aclarando a confusão, os domínios de responsabilidade da regulação desportiva e da regulação estatal. Aliás, na Conferência, esta confusão, resultante até da ordem definida dos oradores que, não seguindo o caminho do geral para o particular, colocou o foco do tema no futebol. E tão de futebol se falou que a conferência se deixou marcar pelos pontos de vista do Presidente do Sporting Clube de Portugal…
Aliás a demonstração de que a violência não está no exercício do Desporto verifica-se na evidência de nunca se ter falado do Atleta - apenas, num ou noutro momento, de jogadores de futebol e apenas por razões laborais.
Assente a focalização no futebol, embora aqui e ali se ouvissem vozes a tentar alertar para a existência da violência noutras envolvências desportivas, pouco se opinou sobre o como intervir naquilo que o Presidente do Sindicato dos Jogadores (de futebol, claro!) definiu como “terra de ninguém”, esse espaço vazio onde nem a capacidade legislativa da Assembleia da República, nem a capacidade interventiva do Governo ou dos promotores do espectáculo desportivo ultrapassam a intervenção tímida e pouco exigente, misturando conceitos para, no fundo, entregar a água do seu capote ao parceiro do lado.
E ouviram-se coisas, mesmo se algumas encobertadas pela preservação dos valores do Desporto chamados então à liça, de espantar.
Como, por exemplo, a proposta do Presidente da Liga de Futebol Profissional - julgo ter percebido que seria para as claques visitantes - do retorno do velho “peão” - áreas não enladeiradas - mesmo se assente no sofisticado conceito de área de cadeiras removíveis (não vá a UEFA torcer o nariz), ignorando - mas muito de acordo com o momento de retrocessos que nos parece assaltar - as mais elementares regras de segurança que a transformação do espectáculo desportivo em espectáculo de massas exige. Se o limite estabelecido para não cair na zona de ocupação espacial de elevado risco é de 5 pessoas por metro quadrado, como garantir - não falando já no conforto dos lugares sentados - que o “peão”, para mais em superfícies inclinadas ou em plataformas, terá a segurança necessária. É que o facto de se pretender ver o jogo de pé não invalida, por razões de objectiva segurança, a necessidade do controlo do posicionamento das pessoas não deixando, nomeadamente, que a nova densidade ultrapasse a densidade resultante dos lugares sentados, garantindo assim o cumprimento do princípio essencial de “uma pessoa, um bilhete, um lugar”.
Não lhe ficando atrás, ouvi a pretensão de um dirigente clubista de aumento do “perímetro de segurança” dos estádios para melhor controlo de adeptos. Claro e o papel das cidades e dos seus habitantes não é outro mais do que ficarem reféns dos jogos de futebol, deitando às urtigas os direitos da cidadania numa subordinação preocupante às exigências simplórias do desporto-rei... fomentando o aumento da “terra de ninguém”: não se ataca o problema da ineficácia do controlo dos maus comportamentos dos adeptos e joga-se apenas no campo da irresponsabilidade do afastamento.  
Também vieram à baila as questões - já recorrentes num país de pouca dimensão e baixa cultura desportivas - do qual do se "com" ou se "contra" definirá o confronto desportivo, bem como os pretendidos malefícios do "resultado" que envolvem o Desporto e a sua prática. A resolução parece-me simples e sem qualquer duplicidade. Naturalmente que o Desporto é "com" porque o "eu" ou o "nós" precisam de outros para competir - a competição consigo próprio não é Desporto! - mas também é “contra” porque são necessários adversários que, com a sua oposição e qualidade, possibilitem a superação individual ou colectiva que define o Desporto. Como sistema complexo que é o Desporto precisa de colaboração (acertar as regras, calendários, locais, etc.) e de oposição (o jogo competitivo). E daqui, desta competição com opositores (porque têm o mesmo objectivo), não vem qualquer mal ao mundo porque estabelecida em regras e normas previamente definidas e acordadas e directamente julgadas por mediadores que garantem a igualdade de oportunidades de cada prova ou momento. E se o Desporto é superação, a sua avaliação faz-se através do resultado. Que não é a fonte directa de qualquer mal mas, como tudo na vida, pode ser bem ou mal perseguido. O Desporto, como a vida, também apresenta a necessidade da escolha. E, para a balizar, criou-se um conjunto de regras - baseadas em Princípios e Valores - que definem o corpo da designada Ética Desportiva.
A questão não estará no resultado - que garante, entre outras coisas, as componentes da pesquisa científica, da inovação de materiais, de métodos ou de processos, do desenvolvimento motor, do controlo da saúde, do equilíbrio competitivo  ou da atractividade que também caracterizam o Desporto - mas sim na criação de formas e meios que evitem a batota na sua construção. Porque Desporto, sem resultado, não existe!
Também se percebeu, apesar dos prejuízos que causam ou causarão à solidez financeira do futebol, que dificilmente nos iremos ver livres do bullying provocado pelos comentadores que enxameiam os programas televisivos de futebol e que, avisaram os jornalistas presentes, poderão, nos tempos mais próximos, tornar-se ainda piores. Mas também aqui, ninguém parece procurar soluções que ultrapassem o deixar andar até que caiam. Porque encarar de frente os problemas e resolvê-los inteligente e eficazmente, não é adequado à permissividade que invadiu a Democracia. Também aqui se ficou pelo esperar para ver.
O futebol, reconheceu-se, está sob suspeição. Por razões diversas, algumas mais conhecidas outras menos. No entanto parece-me que uma das razões que tem tornado o futebol mais atreito a jogo sujo dentro de campo deve-se ao facto de, ao contrário de diversas outras modalidades e muito por uma sua pretensiosa posição de superior importância, nunca ter adaptado as suas regras disciplinares às alterações que a passagem ao profissionalismo e à globalização forçosamente exigem - um bom exemplo dessa má postura é a entrada tardia, mal estruturada e sem qualquer recurso à muita experiência de outros, do vídeo-árbitro. Infelizmente neste campo da exigência da garantia evidente do jogo limpo, tratando-se de uma resultante importante do domínio da auto-regulação desportiva, parece ficar-se à espera que outras entidades instituam a composição do cenário, colocando a mão por baixo do que já não é inocente.
O que não ouvi e teria gostado de ouvir, foram respostas a uma simples pergunta e que, na minha opinião, deveria ter marcado todos os painéis deste Debate Parlamentar: porque é que estamos organizados assim? Ou e de outra forma: como é que chegámos a esta situação?
Encontrada e analisada a evidência das causas, poderemos então encontrar as soluções que real e eficazmente ataquem e resolvam os verdadeiros problemas, ultrapassando as contingências, sejam de que tipo forem, que impedem o cumprimento dos princípios cívicos que a Democracia defende e os princípios e valores que o Desporto exige. Porque a violência na envolvente desportiva existe e não pode ser admitida.

domingo, 1 de abril de 2018

ÉTICA, DESPORTO E CIDADANIA

No título da conferência, a exposição do conceito de que não há Desporto nem Cidadania sem Ética, esse conjunto de valores e princípios que devem nortear a nossa conduta. 
Domínio de estudo da Filosofia conhecido desde, pelo menos, a Antiguidade Clássica, a Ética exige, para sua expressão prática, referências suficientemente reconhecíveis para permitir o seu exercício quotidiano.
Para que serve a Ética? Para colocarmos um adequado limite às nossas acções, não ultrapassando na sua expressão a linha separadora que limita o correcto do incorrecto.
O filósofo e pensador brasileiro Mário Sérgio Cortella, formulando que a Ética é o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: Quero? Posso? Devo? Conjugando-as em "coisas que Quero mas não Devo; coisas que Posso mas não Devo; coisas que Quero mas não Posso”, o filósofo define que a paz de espírito existe quando aquilo que queremos é, simultaneamente, o que podemos e o que devemos fazer.
Ou seja, no dia-a-dia das nossas acções e decisões, a Ética baliza-se pela Decência. Podendo então dizer-se que é éticamente correcto ou positivo aquilo que é Decente! E todos nós, seja qual for o nível de estudos e conhecimentos adquiridos, temos - devemos ter com o que aprendemos na escola e uns com os outros - uma noção clara do que é Decência e do que nos deve limitar nas escolhas.
O que é então Decente no domínio do Desporto?
A primeira ideia que normalmente surge ao falar de Desporto é a de fair-play, esse conceito de espírito desportivo que pretende transmitir a ideia que, visando o seu mais alto rendimento e dando o seu melhor para ganhar, o jogador, o atleta, não deve ou pode tirar qualquer vantagem de algo exterior ou violador quer das regras previamente definidas para cada jogo quer das regras de relacionamento da cidadania. O que coloca uma questão central: como conseguir materializá-lo num mundo cada vez mais hiperindividualista, cheio de pós-verdades e combinações materialistas de interesses onde qualquer meio parece valer para atingir um fim?
E não pode ser assim. Como diz Irene Flunser Pimentel, historiadora contemporânea e Prémio Pessoa 2007, "um fim só é interessante se o meio para o atingir for ético”. E no Desporto não vale, não pode valer, a vitória a qualquer preço por mais que todos nós a procuremos atingir e consideremos a sua importância. 
Nem a vitória é a única forma de sucesso nem a derrota é ponto final de coisa alguma. Aprender a viver com estes conceitos é meio caminho para uma conduta decente. 
Pessoalmente sou um privilegiado nesta matéria. Tive sempre presente o exemplo ético de meu Pai - jogador federado de futebol, andebol e ténis - e as preocupações de minha Mãe para uma representação prática e efectiva de espírito desportivo que ficaram enfatizados numa frase que me tem marcado a vida: “uma derrota, por pior que seja, é sempre mais honrosa do que uma vitória com batota". O resto veio no acréscimo da frequência da então melhor escola de ensino e prática desportiva do país e uma das melhores da Europa - o Colégio Militar - onde o Desporto, na sua variedade expressiva, era encarado nas exigências de excelência das suas componentes globais de superação e de conduta. E, foi com esta base de aprendizagem que se traduzia no respeito, lealdade, humildade, disciplina e solidariedade por companheiros, adversários, árbitros, dirigentes, espectadores, por nós próprios e pelas regras do jogo que encarei sempre a minha carreira desportiva no quadro da Ética.
No Rugby, modalidade de expressão do meu Alto Rendimento e que defino como "modalidade colectiva de combate organizada para a conquista de terreno com o propósito de marcar ensaios”, encontrei a continuidade dessa expressão.
Um dos clubes mais conhecidos e tradicionais do mundo do Rugby - os Barbarians RFC, clube de convites que existe desde 1890 - tem como lema [8] o conceito, idealizado pelo reverendo anglicano W. J. Carey, que “o Rugby é um jogo para cavalheiros de qualquer classe mas não para maus desportistas seja qual for a sua origem”. Este lema assegura que os Barbarians não descriminam pela classe de origem, raça, credo ou cor e que a única qualificação necessária para ser membro é que se seja um bom jogador de rugby e um bom desportista [9]. De certa maneira a comunidade do rugby actual mantém vivo este conceito aberto e tolerante mas exigente mesmo depois do profissionalismo ser uma realidade.
Ao contrário do que é, muitas vezes, dado a entender, os jogadores de Rugby e a comunidade rugbística não são diferentes dos jogadores e adeptos de outras modalidades. Mas comportam-se de forma distinta. Principalmente porque desde o seu início como modalidade organizada foi estabelecido [10] um conjunto de princípios de acordo com as características particulares e próprias do jogo por forma a garantir que ele não passaria disso mesmo: de um jogo! O nosso jogo! E isto faz toda a diferença.
Apesar de - e ao que se conta - ter nascido de “um acto de audaciosa criatividade como se gosta de referir e atribuir a William Webb Ellis, o Rugby, pelas suas características próprias, estabeleceu um conjunto de regras - designadas por Leis do Jogo - que têm no seu Código do Rugby uma espécie de Constituição que, definindo os seus valores de referência, determina o Espírito do Jogo. Controlando assim a forma da sua expressão.
Porque o Rugby, nos duros combates pela bola ou por cada centímetro de terreno, pode, pela exaustão provocada, colocar os jogadores para além dos limites da sua lucidez. E é aí que as restrições impostas pelas Leis do Jogo - já completamente assimiladas pelo conhecimento e treino - funcionam como uma segunda natureza do jogador, diminuindo as hipóteses de violação do Espírito Desportivo e garantindo que cada combate não se transforma numa batalha campal.
De facto, deixando de lado a formação ordenada que recomeça o jogo após falhas técnicas de importância reduzida e para um jogo que estrategicamente estabelece a conquista de terreno como factor decisivo de superioridade sobre o adversário, considerar que, a faltas graves, correspondem pontapés de penalidade que, quando não permitem a procura directa de pontos, garantem, para além do ganho de terreno sem esforço, a continuidade da posse da bola, traduz uma forma inteligente - pelos prejuízos provocados na equipa do elemento faltoso - de censurar colectivamente o recurso à falta. A que acresce a amostragem do "cartão amarelo" que impõe uma suspensão de 10 minutos limitada ao "banco do pecador", por faltas abusivamente deliberadas (não há "faltas inteligentes" no Rugby) ou agressões físicas ou verbais. O que, num jogo em que tacticamente o cumprimento da "lei do espelho" representa uma necessidade, pode produzir uma considerável situação de desvantagem. Para faltas ainda mais graves existe o “cartão vermelho”, equivalente a expulsão do jogo. Como dissuasor há ainda a "lei dos 10 metros” que serve para obrigar a recuar, cedendo terreno, a equipa em que algum dos seus membros não cumpra ou barafuste com as decisões do árbitro e que podem ir desde a não retirada em tempo útil até à expressão dirigida de não concordância. Porque no Rugby apenas o “capitão de equipa” pode falar com o árbitro, evitando-se assim as "reuniões" na tentativa de influenciar decisões. Existe ainda a figura de "ensaio de penalidade" que visa considerar a sua validade quando o impedimento da sua marcação resultou de falta adversária. Como se percebe as faltas, no Rugby, não compensam e as suas Leis estão, de acordo com o Código do Jogo, em constante análise e revisão como meio de garantir a manutenção dos equilibrios necessários à disciplina, auto-domínio e respeito mútuo bem como a segurança da integridade física dos jogadores. 
Um jogador deve confiar que a realização das acções de jogo lhe garantem que a sua integridade física não será posta em causa a não ser de forma acidental. Por razões de segurança não é permitido placar/agarrar acima da linha de ombros de um adversário ou placá-lo - mesmo tocá-lo - quando ele se encontra com os pés no ar ou, ainda, placar de forma a atirar ou largar o adversário de modo a que caia de cabeça no chão. Isto é, existem leis dirigidas especificamente à salvaguarda da integridade física dos jogadores, impedindo assim que a aparência de batalha campal se possa tornar uma realidade.
Para além da visão do árbitro há ainda a possibilidade, usada em todos os jogos de melhor nível competitivo, de recurso ao vídeo-árbitro que tem um protocolo claro e que, tendo começado por ser accionado apenas por iniciativa do árbitro, já alargou o seu âmbito para situações de perigosidade. Esta relação com o vídeo-árbitro- a que os espectadores do estádio podem assisir - tem funcionado muito bem não se tendo assistido, nem no campo nem na comunicação social, a nada parecido com aquilo que vemos ou ouvimos no futebol. Talvez pela simples razão que, fazendo o vídeo-árbitro parte da equipa de arbitragem, são as suas respostas às perguntas do árbitro que definem a solução. Ou seja: à falta de visão do árbitro a responsabilidade da decisão passa para o vídeo-árbitro: “Há alguma razão para não marcar ensaio?”, “Não! Não há qualquer razão e pode marcar ensaio!”. O vídeo do jogo serve ainda para testemunhar qualquer acto de violência, contribuindo como meio de prova para a construção da acusação de jogo desleal. 
Por outro lado o conhecimento do jogo por parte dos jornalistas ou especialistas que fazem a cobertura dos jogos é suficientemente elevado para que sejam as incidências do jogo e as capacidades técnico-tácticas demonstradas pelas equipas e seus jogadores o ponto central dos seus comentários, retirando qualquer importância aos aspectos secundários. E se o respeito pelo árbitro é uma realidade no campo, também o é na comunicação social: o jogo deve-se aos jogadores e suas capacidades e o árbitro é uma peça fundamental - num jogo suficientemente complexo para dele não poder prescindir - para garantir a equidade e a igualdade de tratamento no respeito e interpretação das regras.  
Os valores do Rugby são os valores genéricos do Desporto mas as exigências de conduta foram adaptadas às características que o definem e diferenciam de outros jogos. E assim é possível, mesmo no actual quadro profissional que existe desde 1995, que o Rugby possa manter um enquadramento de conduta ética, espírito desportivo e lealdade que se apresenta como exemplo de elevado nível.
Ou seja, é do conjunto de regras e regulamentos que dirigem o jogo que resulta o desempenho ético das modalidades. Os níveis de pressão física e psíquica a que os jogadores e atletas estão sujeitos no domínio do Alto Rendimento exigem formas de enquadramento que permitam o auto-controlo das suas acções e emoções e que garantam a disciplina, auto-domínio, respeito mútuo e lealdade para permitir intervir no jogo de forma psicologicamente confortável - isto é, sem medos - e tendo garantida a tranquilidade, segurança e retidão imparcial para todos os actores.
Nada do que se faz dentro do campo desportivo pode contrariar as normas da decente convivência entre cidadãos. Nada autoriza que se deixem ficar à porta dos campos, pistas ou estádios os princípios e valores que norteiam o percurso da nossa cidadania que tem por base o reconhecimento expresso das conquistas civilizacionais que representam os Direitos Humanos e as preocupações consequentes de Igualdade, Equidade,Tolerância e Transparência.
O Desporto, para que seja a escola de vida que pretendemos, não pode ver-se envolvido - quaisquer que sejam os artifícios utilizados - na corrupção da manipulação de resultados, na expressão directa ou indirecta da violência, no comportamento batoteiro dos seus agentes, no insultuoso bullying verbal televisivo que nos entra casa dentro. O Desporto não pode ser subvertido no desenho da sua expressão. Cumpre-nos não aceitar o inaceitável!
Sendo a Ética do Desporto balizada pela Decência, a aproximação à Cidadania torna-se evidente. Embora formando dois campos distintos de exposição têm a Decência como linha mestra da qualidade das suas acções. Ou seja, Desporto e Cidadania dependem de uma mesma Ética, de um mesmo conjunto de valores que estabelecem, no mesmo domínio do Respeito, uma mesma Decência. O que significa que a forma como se solucionam os problemas da Cidadania não anda longe da que se exige para solucionar os abusos no Desporto.
A Decência em movimento que o Desporto deve constituir, resulta muito mais das acções de Educação, Diagnóstico e Profilaxia do que de piedosas intenções que tendem a sobrevalorizar gestos que se enquadram na normalidade das exigências da ética ou decência desportivas, banalizando a narrativa e, assim, contribuindo para manter o vigor da doença. 
No Desporto, como na Cidadania, o prémio resulta da eficácia qualitativa das acções realizadas e não de artifícios de compensação. Porque existe uma enorme diferença entre a normalidade de fazer o que se deve e a excepção do feito extraordinário.

João Paulo Bessa

(Texto lido como conferencista convidado na conferência Ética, Desporto e Cidadania, realizada na Universidade Lusófona em 26 de Janeiro de 2018 que, por erro involuntário, só foi possível colocá-lo agora. Este texto foi acompanhado com projecção de slides, quatro dos quais aqui se reproduzem.)

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