A pandemia do covid-19 trouxe à evidência o que já devíamos saber sobre a Cidade: a Cidade sem residentes não tem vida!
Ao deixarmos, sem contestação nem preocupações visíveis, que a Cidade se transformasse num espaço especulativo pelas vantagens dadas a compradores estrangeiros do imobiliário e abrindo as portas de par-em-par ao “exército de ocupação” formado por milhares de turistas de 2/3 dias que, fazendo tábua-rasa das culturas e hábitos locais, impõem o momentâneo das suas regras expulsando habitantes de anos, sectoralizando empregos, uniformizando funções, zonificando a Cidade que, como agora nos apercebemos, ficou vazia. Sem pessoas. Porque os ricos proprietários estrangeiros não vivem cá e porque os turistas dos infindáveis e abusadores alojamentos locais — alegremente transformados em reabilitações da Cidade — não apareceram. Deslumbrada com a aceitação internacional, a Cidade deixou-se transformar num espaço de ganância especulativa, elevando os seus preços e, na desproporção das condições criadas, desleixou os cuidados protectores devidos aos seus. A uns porque os expulsou, a outros porque lhes retirou a sobrevivência ao impedir o ganho diário do pão que comem à noite.
E os citadinos, expulsos para periferias desconhecidas, foram carpir as suas mágoas e desalentos da má-sorte de desprotegidos para fora das nossas vidas de confinados privilegiados. E pouco mais tendo do que a solidariedade de uns quantos para lhes amenizar as agruras.
Ao longo dos últimos anos, por desatenção indesculpável, a Cidade transformou-se: perdeu habitantes, perdeu habitação, perdeu relações de vizinhança, perdeu orgulho de pertença. Perdeu-se, perdendo assim o seu valor de cidadania. E perversamente mostra-se como uma “casa de bonecas” para efeito turístico.
A pandemia veio agora, na imagem das ruas desertas cercadas das diversas arquitecturas que marcam a Cidade, pôr a nu as suas debilidades e impedir-nos a cegueira da ignorância do facto: a Cidade não cumpre a sua obrigação! A Cidade não é o lugar que nos garante as condições de vida desejáveis e necessárias. Porque a Cidade não é a edificação que lhe molda as formas mas sim as pessoas que a articulam, a transformam e lhe garantem a habitabilidade urbana. E essas, não estão!
E, se nada fizermos, a Cidade enquanto lugar de encontro, de invenção, de troca, de cultura, de solidariedade, de bem-estar, de inclusão, não o será mais.
Iniciado o desconfinamento, todos os que vivem nos subúrbios e dependem do que resta de empregos urbanos, transbordam — nada que seja novidade — em transportes colectivos insuficientes e onde a impossibilidade do distanciamento físico aumenta o risco de contágio, transformando estes transportes no melhor amigo da continuidade pandémica.
Que podemos fazer perante este desequilíbrio social e funcional que percebemos crescente? Muito!
Primeiramente recusando começar pelo fim da linha, apresentando modismos como soluções para os problemas que nos envolvem. Problemas que são muito mais do que formais e que pertencem ao domínio dos valores e direitos da cidadania.
Antes do mais e como objectivo fundamental a Cidade precisa de voltar à sua essência: a Cidade precisa de mais residentes, ponto! E este é o conceito que deve nortear todas as acções a desenvolver. O que, embora não se fazendo de um dia para o outro, nada impede de ser bem pensado desde já. Evitando recorrer a soluções gastas e de duvidoso resultado que já demonstraram a sua ineficácia.
Antes do mais a Cidade precisa de minorar a actual situação do tempo bi-diariamente perdido nas deslocações casa/trabalho. Aumentando a acessibilidade ao direito à habitação e procurando garantir o exercício igualitário de viver na cidade onde se trabalha. O que levará o seu tempo, percebe-se…
Mas desde já, algumas acções de carácter imediato são possíveis — aproximar os deslocados da Cidade dos seus empregos, ajudar à contenção infecciosa e preparar o futuro. E se a diminuição do tempo de deslocação não é imediata, é possível a diminuição do tempo de espera e a melhoria do conforto, introduzindo definitivamente o conceito de horários laborais desfasados, permitindo que menos gente se desloque ao mesmo tempo. E poderemos ainda diminuir o número destes torna-viagem contemporâneos se mantivermos o sistema de teletrabalho.
Horários laborais desfasados e continuidade do teletrabalho são portanto medidas necessárias e urgentes.
E, simultaneamente, trabalhar para que o retorno de residentes se faça com a criação de “habitats urbanos” — aquilo a que já se deu o nome de “unidades de vizinhança” — dessectoralizando a Cidade e derrotando a gentrificação com a mistura social e funcional. Misturando tudo e todos, trazendo de novo à liça os conceitos dos anos sessenta de Jane Jacobs e de “A Cidade não é uma árvore” de Christopher Alexander para permitir o desenvolvimento urbano dos 3 Tês de Richard Florida e garantir a atractividade criativa de Tecnologias, do Talento e da Tolerância.
Cidades europeias já iniciaram este percurso. Barcelona com o seu programa de “supermanzanas” procura, diminuindo tempos de deslocação, aproximar as necessidades urbanas quotidianas dos residentes da sua habitação e a que junta ainda a possibilidade de utilização de um superalgoritmo de pesquisa de preferências e interesses próprios dos moradores, começando assim a preparar o futuro.
Em Paris, com base em seis razões de uma urbanidade equitativa como são habitação digna, trabalho em decentes condições, facilidades de abastecimento, bem-estar, educação e divertimento nos tempos livres, foi lançado o programa municipal “Paris do 1/4 de Hora”. Um programa a aplicar em toda a Cidade e com o objectivo de garantir que a 15 minutos de casa, cada parisience irá ter um fácil acesso — a pé ou de bicicleta — às necessidades do seu quotidiano, não só de trabalho, de escola ou de abastecimento mas também de ocupação activa de tempos livres para si, seus filhos ou netos. Isto é: a Cidade deixará para trás os seus sectores monofuncionalizados, do “aqui vivo, ali trabalho e além ocupo os meus tempos livres” para reduzir o tempo de acesso, aumentar a entre-ajuda e o sentimento de pertença, garantindo assim uma real melhoria de condições de habitabilidade e de vida.
A oportunidade de que agora se fala em Portugal de possíveis programas de habitação, deve ser vista, acima de tudo, como uma efectiva oportunidade para os portugueses verdadeiramente necessitados de acesso a uma habitação digna. Priorizar o Direito à Habitação sobre a gentrificação turística resulta desta perspectiva e que é obrigatório executar. A nós Arquitectos, exige-se a demonstração de capacidades e competências que permitam criar a habitabilidade exigível no quadro de uma urbanidade equitativa e integrável no amplo e complexo movimento da Cidade.
[publicado in Público Opinião Habitação e Urbanismo, 20 de Junho de 2020]