Hoje seria o 82º aniversário do Jorge Sampaio — dia muito triste pelo recente falecimento mas também um dia inevitável de memória. Ouvi o seu nome, aos meus quinze anos e pela primeira vez, em 62: estava no Colégio Militar e o Batalhão Colegial tinha feito um “levantamento de rancho” que durou uns dias com os consequentes castigos de que resultaram expulsões e suspensões e um natural péssimo ambiente que foi durando até ao final do ano lectivo. O que teve como resultado — nos primeiros dias, para nos trazerem comida para compensar a deixada nos refeitórios e depois pela solidariedade do apoio pelo endurecimento do dia-a-dia colegial — que ex-alunos viessem, já noite, ao fundo da “quinta” para saber como iam as coisas e para contarem o que se passava lá “por fora”. Alguns andavam na luta estudantil e contavam que o “comandante da crise” era um tipo de Direito chamado Jorge Sampaio e que tinha a alcunha — no Colégio as alcunhas eram um nome próprio — de “Cenoura”.
Anos depois, embora o visse - pela proximidade do Expresso onde era colaborador - no Flórida, encontramo-nos na candidatura de Mário Soares e já no Partido Socialista participei activamente, pela mão de Lopes Cardoso, na sua candidatura a Secretário-Geral. Com a sua decisão de se candidatar à CM Lisboa, estive naturalmente com ele e com a sua candidatura. Com a sua vitória fui convidado a acompanhá-lo enquanto seu assessor para a Área Urbanística e assim pude — numa enorme vantagem profissional — participar na construção, alinhada na capacidade e sabedoria do António Fonseca Ferreira, dessa nova visão da cidade “Lisboa Capital Atlântica da Europa” traduzida no excelente Plano Estratégico de Lisboa em que pude participar enquanto membro do seu Conselho e que teria permitido — como se depreende da leitura dos seus fundamentos — que Lisboa fosse hoje, a par de Paris, Barcelona, Copenhaga ou Berlim, uma cidade de vanguarda do actual movimento de cidades para as pessoas. Infelizmente ao longo dos anos subsequentes, esse objectivo e estratégia para o concretizar, foi sendo ignorado ou incompreendido.
Foi, pessoal e profissionalmente, um enorme privilégio ter podido estar presente — e adquirir novos conhecimentos, actualizando perspectivas fixadas no tempo de uma Escola semi-parada — nesta transformação de conceitos, de papeis, de exigências, de objectivos que devem marcar o desenvolvimento das cidades. Disso são exemplo o realojamento de lisboetas de aglomerados degradados ou os pequenos mas importantes passos na realização de um todo, como a aproximação ao rio, a recuperação do Coliseu dos Recreios — lembro-me de, a pedido do especialista israelita de acústica, termos andado a bater palmas em diversos sítios da plateia e dos balcões para controlo da colocação das placas aéreas — do convite a Jacques Delors — um aficionado de futebol — para vir a Lisboa e que tive a possibilidade de acompanhar na sua estada e poder ver um Benfica-Sporting com conhecimento directo do também seu ídolo Eusébio (vestiu de imediato e por cima do casaco, a camisola de jogador que lhe foi oferecida), a realização de uma Semana de Lisboa em Viena, aproveitando a disputa da final da Taça dos Campeões Europeus de 1990 entre o Benfica e o Milão (para além do Fado com Luz Sá da Bandeira, de Olga Pratts, dos Madres de Deus de Teresa Salgueiro ou de afamados cozinheiros da gastronomia lisboeta, levou também o José Mário Branco cuja família havia acolhido, em sua casa, a esposa do Primeiro-Ministro austríaco durante a Guerra… imagine-se a surpresa).
Mas a visão era também ampliada por uma preocupação cosmopolita de fazer da sua cidade, da sua Lisboa, uma capital reconhecida internacionalmente ao aceitar a realização da Expo 98 a que não faltou uma ida de autocarro à Sevilha 92 de todos os colaboradores próximos para não repetir erros na Lisboa 98 ou da Lisboa Capital Europeia da Cultura de 94 e que teve, na sua 7ª Colina e com a responsabilidade do Elísio Summavielle, uma demonstração das possibilidades de, se juntos e focados num mesmo objectivo, reabilitar a cidade que marca a nossa identidade. Ou ainda com a proposta do Miguel Portas de iniciar a criação dos grandes concertos abertos a grandes plateias — e assim vieram os Rolling Stones a Alvalade — ou o cuidado colocado na realização do programa do Pavilhão da Expo “toma cuidado com o programa, deve ser um pavilhão polivalente mas que possa receber eventos desportivos do melhor nível. A responsabilidade é tua!”, disse-me. Propus-lhe que juntasse á equipa Luis Millet, responsável do programa do Pavilhão Saint Jordi de Barcelona realizado para os Jogos Olímpicos de 92 mas com a preocupação de servir a cidade. Nem hesitou.
Nesta aventura, Jorge Sampaio distinguiu-me sempre com demonstrações de amizade e de confiança política e profissional. Na sua permanente simpatia aproximava-se dos membros do seu Gabinete de forma as que as relações pessoais produzissem, pela proximidade e participação sem barreiras, relações de trabalho profícuas, inovadoras e competentes (trabalhávamos que nos fartávamos e estudávamos muito…). “Se vocês fossem meus amigos”, disse ao abrir a porta do nosso gabinete sem aviso-prévio e com toda a naturalidade, “levavam-me a almoçar a um sítio agradável e com boa vista” — saímos, tomámos um cacilheiro, andámos a pé junto ao rio da outra margem já a adivinhar, num bonito dia de sol, o prazer da vista deslumbrante de Lisboa. O contentamento do convidado foi evidente.
Sempre que tinha um jogo importante — treinava o rugby do Cascais na altura — manifestava-me a sua amizade aparecendo para ver o jogo. Lembrava-me o André que, há bem pouco tempo, se fartaram de rir, ele e o pai, ao relembrarem a minha bengala pelo ar — não foi dirigida a ninguém! — numa altura em que um erro infantil de um jogador da minha equipa nos ia fazendo perder o campeonato. E profissionalmente ou politicamente sempre me mostrou a sua confiança mandando-me negociar, de acordo com os preceitos estratégicos estabelecidos, com empreendedores ou autores de projectos. Isto para além de me pedir que escrevesse textos que iria utilizar na sua função de Presidente, não sem que e quando entendia me pedir “autorização” para alterar uma frase porque “não consigo dizer isto assim”. Fazia a alteração à mão, sempre de maneira que eu visse, e guardava os papeis.
“És capaz de fazer um discurso em francês?” perguntou-me uma manhã. Que sim, disse-lhe. “Então vais amanhã para Paris, se fazes o favor, para discursares por mim no Centro Pompidou.” Falamos uns minutos sobre o tema e que não precisava de ver o texto. Em Paris tive como guia o Eduardo Prado Coelho que me enquadrou na organização francesa onde estavam portugueses e as suas associações. Na volta disse-me com a maior naturalidade do mundo: “Sei que estiveste bem!”. Noutra altura fui, com o Vasco Franco que era vereador, a diversas capitais da América do Sul apresentar a sua candidatura — que acabou vitoriosa — à presidência da Federação Mundial das Cidades Unidas.
Fui com ele, quando ia receber um prémio às Nações Unidas, a Nova Iorque — tivemos a inteligência de ir, do aeroporto para a cidade, de helicóptero para admirar uma inesquecível vista aérea. Foi com ele que, aí, conheci Ramos Horta com quem estivemos a conversar sobre Timor — “ficas como o contacto dele em Lisboa”, disse-me depois de ter dito a Ramos Horta que sempre que precisasse de alguma coisa que me contactasse que eu daria o andamento necessário. Á noite fomos a clubes de jazz ouvir fabulosos músicos de quem nunca tínhamos ouvido o nome e fomos também ouvir um notável concerto, convidados por um dos seus patronos, numa oportunidade rara de ouvir uma orquestra com mais de 100 figuras. No dia seguinte, o mesmo patrono levou-nos de barco Hudson fora, a ver de perto a Estátua da Liberdade e a skyline nova-iorquina onde aproveitei para fotografar o Jorge com as, agora destruídas, Twin Towers em fundo. De dia fomos aprendendo como se movimenta uma cidade com horários diferenciados — do nosso hotel podíamos ver o acender das luzes por tempos diferentes — e percorríamos, nos poucos intervalos possíveis, os espaços da cidade para perceber que não são os edifícios altos que fazem o mal das cidades…
Tive uma sorte espantosa ao poder ser seu colaborador. Aumentei os meus conhecimentos, aprendi com ele uma ética de liderança, a obrigação de ouvir as partes, a lidar com perspectivas e interesses desiguais ou mesmo divergentes, a não ceder nos princípios ou nas questões essenciais — aprendizagem que me foi valiosíssima para, posteriormente, desempenhar capazmente os cargos de Coordenador Nacional da Medida Desporto do III Quadro Comunitário de Apoio ou de Vice-Presidente do Instituto do Desporto de Portugal. A nossa convivência foi, para mim, uma escola de elevado nível.
Meu caro Jorge: por tudo isto que me possibilitaste, estou-te muito grato. Como escrevi no teu Livro de Condolências: “o teu Exemplo ficará vivo para sempre na minha memória. Foi uma honra servir sob as tuas ordens. Com profunda amizade” o meu até sempre!