domingo, 31 de dezembro de 2023

KNIGHT “POTININHAS” DE CAMPO DE OURIQUE

UM TEXTO DA ANA SOBRE O NOSSO GATO KNIGHT ESCRITO NO FINAL DO ANO EM QUE ELE NOS DEIXOU

Lisboa, Junho de 2007 - 18 de Fevereiro de 2023


“Nem sei bem por onde começar mas tenho que escrever sobre o meu adorado Knight. Mesmo que seja sempre um texto incompleto, tenho de falar dele, ele merece e eu preciso.

Talvez começar... pelo começo: o Knight foi um caso de amor à primeira vista sobretudo da sua parte.
O Knight era um gatinho preto, fechado numa jaula de arame, à espera de quem o adotasse numa loja de produtos para animais em Campo d'Ourique.
Estávamos em pleno Verão e quase de partida para banhos e fomos tratar do necessário aprovisionamento para o Percy, o Primeiro-Gato.
A senhora que habitualmente nos atendia, a Margarida, disse-nos assim que entrámos: - Tenho aqui um gatinho para fazer companhia ao vosso Percy! E colocou no meu colo um gatinho preto que logo abraçou o meu pescoço e escondeu nele a cabecinha a ronronar... e quando, a seguir, saímos da loja, a Margarida veio a correr atrás de nós para chamar a nossa atenção para o gatinho preto esticado em pé, agarrado às grades da jaula, para nos seguir com o olhar através do vidro da montra: - Ele escolheu-vos! Não há dúvida! Nunca o tinha visto fazer nada igual...
Era um sábado de Agosto ao fim da tarde e eu não tinha sequer equacionado a logística de um segundo gato e resisti ao apelo. Porém fiquei o resto do fim-de-semana a contorcer-me de ansiedade pela segunda-feira ao mesmo tempo que lia tudo sobre como apresentar um segundo gato a um gato residente, neste caso a Sir Percy Val d'Asseca que, até então, era o adorado, mimado e altivo 'gato único' há quase dois anos.
Às dez da manhã de segunda-feira liguei para a loja e disse: não entregue o gatinho preto a ninguém, eu vou buscá-lo quando sair do Ministério ao fim da tarde. Faz muito bem, disse logo a Margarida, nunca o vi reagir assim com mais ninguém. Vai ser muito feliz com ele!
E fui. Tão feliz que passados mais de nove meses sobre a sua partida continua s ser difícil falar dele...
O Knight - assim chamado para não ficar atrás do Percy e porque o elenco dos cavaleiros da távola redonda já não oferecia mais opções interessantes e, também, pela ambiguidade da homofonia com night, sugestiva do sua magnífica pelagem negra - foi o meu companheiro fidelissimo nos quase dezasseis curtos anos que viveu connosco.
Eu era dele e ele era meu.
Tinha sempre, porém, o cuidado de fazer as suas maiores demonstrações de afecto longe dos olhares dos outros - primeiro do Percy e, mais tarde sobretudo da Nina. Eram manifestações genuinas de ternura e não para suscitar ciúmes e lançar desafios.
Era de uma grande generosidade e muito, muito condescendente comigo.
Acompanhava-me de um lado para outro e achava interessante tudo o que eu fazia. Bastava cruzarmos olhares ou eu aparecer à porta do quarto onde ele estivesse para começar logo a ronronar e saudava-me sempre com miados dobrados de satisfação que mais pareciam trinados.
Sempre que eu chegava a casa recebia-me com o relato integral do que se passara na minha ausência. Falava comigo tentando reproduzir os meus sons e entoações. Imitava na perfeição os sons de conforto e ternura que eu lhe havia dirigido quando do seu isolamento, ainda bebé, antes de iniciar o convívio com o Percy. O Knight fazia sempre um genuíno esforço para comunicar.
E cumpria todas as ordens algumas vezes sob engraçados e sonoros protestos!
Tinha a humildade de dar precedência ao Percy, mais velho e mais antigo no território, e amor próprio suficiente para contrariar ou evitar as poses de gata dominante da Nina que chegou quatro anos mais tarde.
Era o gatinho mais traquinas e também o mais divertido dos três. Foi o único a fazer "poço da morte" na sala e a ir explorar o telhado (e nós a julgar que o Percy nos chamava insistentemente à varanda para nos mostrar mais uma osga...), a fazer equilibrio no prumo das grades instaladas nas varandas para segurança deles ou a preparar-se para dormir nas floreiras penduradas sobre o abismo do lado de fora da varanda - foi assim que aprendi que, com gatos, as grades só cumprem a sua função se eles condescenderem em considerá-las um obstáculo.
Foi também o único a ser resgatado do cimo dos armários. Não porque ele não soubesse descer mas porque nós é que não aguentávamos esperar descontraidamente por uma proeza que podia não acabar bem. E também nunca percebemos como é que ele conseguia trepar até lá, bem junto ao tecto.
Era de uma elegância e agilidade fabulosas e muitas vezes fiquei longos minutos a admirar a sua beleza a dormir "derramado" em total relaxamento em cima do muro que separa a sala do corredor.
Nos últimos tempos, o desconforto, causado pelo maldito linfoma que o matou, levava-o a procurar coisas estranhas para comer sobretudo papel que abundava (e abunda) no que foi o seu território. Se me zangava com ele, desafiava-me ostensivamente olhos nos olhos e de papel na boca. Se lhe suplicava ternamente - Potininhas! - que largasse a revista, o envelope, a receita médica, derretia-se com a minha voz, largava tudo e vinha ter comigo para receber as festas devidas a um gato obediente.
Potininhas foi o nome que espontâneamente saiu da minha boca numa das inúmeras vezes em que, casa fora, o Knight abria caminho para mim saracoteando-se à minha frente e olhando para trás segundo a segundo para confirmar se efectivamente ele estaria a adivinhar bem o meu percurso. Potininhas ou Potinitas ficaram a ser os nossos nomes para os momentos mais íntimos de ternura ou súplica. E ele gostava do nome ou, pelo menos, gostava da entoação com que eu o dizia.
De repente, nos finais de Novembro do ano passado o seu estado de saúde desestabilizou-se. O primeiro sinal veio da tiróide que deveria estar regulada pela medicação e que quase deixou de produzir tiroxina; suprimida a medicação, os valores da dita tiroxina dispararam para níveis estratosféricos. Porém, o estudo atomizado da fisiologia, seja humana ou animal, não proporciona abordagens holísticas ou integrativas e apesar das re-avaliações sucessivas a que estava sujeito, só em finais de Janeiro se percebeu que o linfoma estava a ganhar uma longa batalha de mais de cinco anos em que o Knight foi submetido a uma cirurgia, a quimioterapia, TACs, ecografias, análises e a uma panóplia de muitos outros medicamentos em permanência.
O Knight gostava muito da cama de lençóis lavados e de dormir a sesta no meio da cama recostado em almofadas: um gato preto sobre fundo branco!
Estes textos ficam sempre muito aquém do privilégio que é coabitar com estas criaturas encantatórias e enfeitiçantes que conhecem as nossas rotinas e agradecem os nossos cuidados sem perder a dignidade que lhes é inerente e que lhes é devida, e de sermos destinatárias da sua afeição sem hipocrisia e dos seus incansáveis esforços de comunicação.
Ao contrário do que algumas pessoas pensarão, os animais não existem para nos servirem e nos divertirem, os animais têm dignidade própria existem por direito próprio e nós só temos de lhes agradecer a incomensurável condescendência que têm para connosco e a imensa alegria que trazem à nossa vida.
O Knight partiu no dia 18 de Fevereiro de 2023 na sequência de um linfoma que se declarou no início de Janeiro de 2018 e que conduziu a uma perigosa cirurgia, em 28 de Maio desse mesmo ano, onde lhe foi retirada uma grande secção do intestino. Tinha um prognóstico de sobrevivência máxima de dois anos, ele e eu lutámos até aos cinco anos. Ele e eu desejariamos que fossem muitos, muitos mais!
Que saudades da criatura maravilhosa que passou pela minha vida!”


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