domingo, 1 de abril de 2018

ÉTICA, DESPORTO E CIDADANIA

No título da conferência, a exposição do conceito de que não há Desporto nem Cidadania sem Ética, esse conjunto de valores e princípios que devem nortear a nossa conduta. 
Domínio de estudo da Filosofia conhecido desde, pelo menos, a Antiguidade Clássica, a Ética exige, para sua expressão prática, referências suficientemente reconhecíveis para permitir o seu exercício quotidiano.
Para que serve a Ética? Para colocarmos um adequado limite às nossas acções, não ultrapassando na sua expressão a linha separadora que limita o correcto do incorrecto.
O filósofo e pensador brasileiro Mário Sérgio Cortella, formulando que a Ética é o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: Quero? Posso? Devo? Conjugando-as em "coisas que Quero mas não Devo; coisas que Posso mas não Devo; coisas que Quero mas não Posso”, o filósofo define que a paz de espírito existe quando aquilo que queremos é, simultaneamente, o que podemos e o que devemos fazer.
Ou seja, no dia-a-dia das nossas acções e decisões, a Ética baliza-se pela Decência. Podendo então dizer-se que é éticamente correcto ou positivo aquilo que é Decente! E todos nós, seja qual for o nível de estudos e conhecimentos adquiridos, temos - devemos ter com o que aprendemos na escola e uns com os outros - uma noção clara do que é Decência e do que nos deve limitar nas escolhas.
O que é então Decente no domínio do Desporto?
A primeira ideia que normalmente surge ao falar de Desporto é a de fair-play, esse conceito de espírito desportivo que pretende transmitir a ideia que, visando o seu mais alto rendimento e dando o seu melhor para ganhar, o jogador, o atleta, não deve ou pode tirar qualquer vantagem de algo exterior ou violador quer das regras previamente definidas para cada jogo quer das regras de relacionamento da cidadania. O que coloca uma questão central: como conseguir materializá-lo num mundo cada vez mais hiperindividualista, cheio de pós-verdades e combinações materialistas de interesses onde qualquer meio parece valer para atingir um fim?
E não pode ser assim. Como diz Irene Flunser Pimentel, historiadora contemporânea e Prémio Pessoa 2007, "um fim só é interessante se o meio para o atingir for ético”. E no Desporto não vale, não pode valer, a vitória a qualquer preço por mais que todos nós a procuremos atingir e consideremos a sua importância. 
Nem a vitória é a única forma de sucesso nem a derrota é ponto final de coisa alguma. Aprender a viver com estes conceitos é meio caminho para uma conduta decente. 
Pessoalmente sou um privilegiado nesta matéria. Tive sempre presente o exemplo ético de meu Pai - jogador federado de futebol, andebol e ténis - e as preocupações de minha Mãe para uma representação prática e efectiva de espírito desportivo que ficaram enfatizados numa frase que me tem marcado a vida: “uma derrota, por pior que seja, é sempre mais honrosa do que uma vitória com batota". O resto veio no acréscimo da frequência da então melhor escola de ensino e prática desportiva do país e uma das melhores da Europa - o Colégio Militar - onde o Desporto, na sua variedade expressiva, era encarado nas exigências de excelência das suas componentes globais de superação e de conduta. E, foi com esta base de aprendizagem que se traduzia no respeito, lealdade, humildade, disciplina e solidariedade por companheiros, adversários, árbitros, dirigentes, espectadores, por nós próprios e pelas regras do jogo que encarei sempre a minha carreira desportiva no quadro da Ética.
No Rugby, modalidade de expressão do meu Alto Rendimento e que defino como "modalidade colectiva de combate organizada para a conquista de terreno com o propósito de marcar ensaios”, encontrei a continuidade dessa expressão.
Um dos clubes mais conhecidos e tradicionais do mundo do Rugby - os Barbarians RFC, clube de convites que existe desde 1890 - tem como lema [8] o conceito, idealizado pelo reverendo anglicano W. J. Carey, que “o Rugby é um jogo para cavalheiros de qualquer classe mas não para maus desportistas seja qual for a sua origem”. Este lema assegura que os Barbarians não descriminam pela classe de origem, raça, credo ou cor e que a única qualificação necessária para ser membro é que se seja um bom jogador de rugby e um bom desportista [9]. De certa maneira a comunidade do rugby actual mantém vivo este conceito aberto e tolerante mas exigente mesmo depois do profissionalismo ser uma realidade.
Ao contrário do que é, muitas vezes, dado a entender, os jogadores de Rugby e a comunidade rugbística não são diferentes dos jogadores e adeptos de outras modalidades. Mas comportam-se de forma distinta. Principalmente porque desde o seu início como modalidade organizada foi estabelecido [10] um conjunto de princípios de acordo com as características particulares e próprias do jogo por forma a garantir que ele não passaria disso mesmo: de um jogo! O nosso jogo! E isto faz toda a diferença.
Apesar de - e ao que se conta - ter nascido de “um acto de audaciosa criatividade como se gosta de referir e atribuir a William Webb Ellis, o Rugby, pelas suas características próprias, estabeleceu um conjunto de regras - designadas por Leis do Jogo - que têm no seu Código do Rugby uma espécie de Constituição que, definindo os seus valores de referência, determina o Espírito do Jogo. Controlando assim a forma da sua expressão.
Porque o Rugby, nos duros combates pela bola ou por cada centímetro de terreno, pode, pela exaustão provocada, colocar os jogadores para além dos limites da sua lucidez. E é aí que as restrições impostas pelas Leis do Jogo - já completamente assimiladas pelo conhecimento e treino - funcionam como uma segunda natureza do jogador, diminuindo as hipóteses de violação do Espírito Desportivo e garantindo que cada combate não se transforma numa batalha campal.
De facto, deixando de lado a formação ordenada que recomeça o jogo após falhas técnicas de importância reduzida e para um jogo que estrategicamente estabelece a conquista de terreno como factor decisivo de superioridade sobre o adversário, considerar que, a faltas graves, correspondem pontapés de penalidade que, quando não permitem a procura directa de pontos, garantem, para além do ganho de terreno sem esforço, a continuidade da posse da bola, traduz uma forma inteligente - pelos prejuízos provocados na equipa do elemento faltoso - de censurar colectivamente o recurso à falta. A que acresce a amostragem do "cartão amarelo" que impõe uma suspensão de 10 minutos limitada ao "banco do pecador", por faltas abusivamente deliberadas (não há "faltas inteligentes" no Rugby) ou agressões físicas ou verbais. O que, num jogo em que tacticamente o cumprimento da "lei do espelho" representa uma necessidade, pode produzir uma considerável situação de desvantagem. Para faltas ainda mais graves existe o “cartão vermelho”, equivalente a expulsão do jogo. Como dissuasor há ainda a "lei dos 10 metros” que serve para obrigar a recuar, cedendo terreno, a equipa em que algum dos seus membros não cumpra ou barafuste com as decisões do árbitro e que podem ir desde a não retirada em tempo útil até à expressão dirigida de não concordância. Porque no Rugby apenas o “capitão de equipa” pode falar com o árbitro, evitando-se assim as "reuniões" na tentativa de influenciar decisões. Existe ainda a figura de "ensaio de penalidade" que visa considerar a sua validade quando o impedimento da sua marcação resultou de falta adversária. Como se percebe as faltas, no Rugby, não compensam e as suas Leis estão, de acordo com o Código do Jogo, em constante análise e revisão como meio de garantir a manutenção dos equilibrios necessários à disciplina, auto-domínio e respeito mútuo bem como a segurança da integridade física dos jogadores. 
Um jogador deve confiar que a realização das acções de jogo lhe garantem que a sua integridade física não será posta em causa a não ser de forma acidental. Por razões de segurança não é permitido placar/agarrar acima da linha de ombros de um adversário ou placá-lo - mesmo tocá-lo - quando ele se encontra com os pés no ar ou, ainda, placar de forma a atirar ou largar o adversário de modo a que caia de cabeça no chão. Isto é, existem leis dirigidas especificamente à salvaguarda da integridade física dos jogadores, impedindo assim que a aparência de batalha campal se possa tornar uma realidade.
Para além da visão do árbitro há ainda a possibilidade, usada em todos os jogos de melhor nível competitivo, de recurso ao vídeo-árbitro que tem um protocolo claro e que, tendo começado por ser accionado apenas por iniciativa do árbitro, já alargou o seu âmbito para situações de perigosidade. Esta relação com o vídeo-árbitro- a que os espectadores do estádio podem assisir - tem funcionado muito bem não se tendo assistido, nem no campo nem na comunicação social, a nada parecido com aquilo que vemos ou ouvimos no futebol. Talvez pela simples razão que, fazendo o vídeo-árbitro parte da equipa de arbitragem, são as suas respostas às perguntas do árbitro que definem a solução. Ou seja: à falta de visão do árbitro a responsabilidade da decisão passa para o vídeo-árbitro: “Há alguma razão para não marcar ensaio?”, “Não! Não há qualquer razão e pode marcar ensaio!”. O vídeo do jogo serve ainda para testemunhar qualquer acto de violência, contribuindo como meio de prova para a construção da acusação de jogo desleal. 
Por outro lado o conhecimento do jogo por parte dos jornalistas ou especialistas que fazem a cobertura dos jogos é suficientemente elevado para que sejam as incidências do jogo e as capacidades técnico-tácticas demonstradas pelas equipas e seus jogadores o ponto central dos seus comentários, retirando qualquer importância aos aspectos secundários. E se o respeito pelo árbitro é uma realidade no campo, também o é na comunicação social: o jogo deve-se aos jogadores e suas capacidades e o árbitro é uma peça fundamental - num jogo suficientemente complexo para dele não poder prescindir - para garantir a equidade e a igualdade de tratamento no respeito e interpretação das regras.  
Os valores do Rugby são os valores genéricos do Desporto mas as exigências de conduta foram adaptadas às características que o definem e diferenciam de outros jogos. E assim é possível, mesmo no actual quadro profissional que existe desde 1995, que o Rugby possa manter um enquadramento de conduta ética, espírito desportivo e lealdade que se apresenta como exemplo de elevado nível.
Ou seja, é do conjunto de regras e regulamentos que dirigem o jogo que resulta o desempenho ético das modalidades. Os níveis de pressão física e psíquica a que os jogadores e atletas estão sujeitos no domínio do Alto Rendimento exigem formas de enquadramento que permitam o auto-controlo das suas acções e emoções e que garantam a disciplina, auto-domínio, respeito mútuo e lealdade para permitir intervir no jogo de forma psicologicamente confortável - isto é, sem medos - e tendo garantida a tranquilidade, segurança e retidão imparcial para todos os actores.
Nada do que se faz dentro do campo desportivo pode contrariar as normas da decente convivência entre cidadãos. Nada autoriza que se deixem ficar à porta dos campos, pistas ou estádios os princípios e valores que norteiam o percurso da nossa cidadania que tem por base o reconhecimento expresso das conquistas civilizacionais que representam os Direitos Humanos e as preocupações consequentes de Igualdade, Equidade,Tolerância e Transparência.
O Desporto, para que seja a escola de vida que pretendemos, não pode ver-se envolvido - quaisquer que sejam os artifícios utilizados - na corrupção da manipulação de resultados, na expressão directa ou indirecta da violência, no comportamento batoteiro dos seus agentes, no insultuoso bullying verbal televisivo que nos entra casa dentro. O Desporto não pode ser subvertido no desenho da sua expressão. Cumpre-nos não aceitar o inaceitável!
Sendo a Ética do Desporto balizada pela Decência, a aproximação à Cidadania torna-se evidente. Embora formando dois campos distintos de exposição têm a Decência como linha mestra da qualidade das suas acções. Ou seja, Desporto e Cidadania dependem de uma mesma Ética, de um mesmo conjunto de valores que estabelecem, no mesmo domínio do Respeito, uma mesma Decência. O que significa que a forma como se solucionam os problemas da Cidadania não anda longe da que se exige para solucionar os abusos no Desporto.
A Decência em movimento que o Desporto deve constituir, resulta muito mais das acções de Educação, Diagnóstico e Profilaxia do que de piedosas intenções que tendem a sobrevalorizar gestos que se enquadram na normalidade das exigências da ética ou decência desportivas, banalizando a narrativa e, assim, contribuindo para manter o vigor da doença. 
No Desporto, como na Cidadania, o prémio resulta da eficácia qualitativa das acções realizadas e não de artifícios de compensação. Porque existe uma enorme diferença entre a normalidade de fazer o que se deve e a excepção do feito extraordinário.

João Paulo Bessa

(Texto lido como conferencista convidado na conferência Ética, Desporto e Cidadania, realizada na Universidade Lusófona em 26 de Janeiro de 2018 que, por erro involuntário, só foi possível colocá-lo agora. Este texto foi acompanhado com projecção de slides, quatro dos quais aqui se reproduzem.)

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