quarta-feira, 4 de julho de 2018

UM PROVISÓRIO DEFINITIVO (texto inicial)*

Depois do veto presidencial sobre o anterior decreto da Assembleia da República relacionado com a possibilidade de engenheiros—civis assinarem projectos de Arquitectura e uma vez que, pela clareza da acusação presidencial — “alterando fundamentalmente uma transição no tempo para uma permanência da exceção, nascida antes do 25 de abril de 1974.” — foi colocado, ignorando o teor do veto e num misto de responsabilidade urgente do PCP, PAN e PSD, um novo diploma na Assembleia da República que foi aprovado — passadas apenas 3 semanas e com 124 votos (80 do PSD, 25 do PS, 15 do PCP, 2 dos Verdes, 1 do CDS, e 1 do PAN) favoráveis.
Não consigo perceber tanto empenho na imposição de um disparate tão grande e baseado em falácias injustificáveis. Que a Directiva Europeia dizia isto e que o Provedor exigia aquilo, argumentaram. Nada! Nem um nem outro dos documentos chamados à colação exigia nada do que pretendiam que exigisse.
A Directiva 2005/36/CE estabelece apenas que quem é considerado com as condições para exercer a profissão de Arquitecto num dado país comunitário tem o direito, numa consequência elementar do direito de livre circulação, ao reconhecimento mútuo em qualquer outro país membro da Comunidade Europeia. Como escreve Freitas do Amaral num parecer pedido pela Ordem dos Arquitectos: “A norma é de uma clareza meridiana: a Directiva aplica-se a quem, tendo obtido, as suas qualificações num dado Estado membro, pretenda exercer a correspondente profissão num outro Estado membro.” Para adiantar: “A directiva não pode ser invocada, pois, por quem pretenda exercer uma profissão no mesmo Estado membro onde obteve as qualificações.”
Claro que a Recomendação do Provedor da Justiça, reclamando, no seu último ponto (68), “uma clarificação urgente” por parte da “vontade parlamentar” é, isso mesmo e por competência legal, uma recomendação e não uma exigência. Se assim não fosse não seria possível — pelo que é e sendo quem é — o teor justificativo do veto presidencial. 
A base da Recomendação é a insistência no entendimento de “direitos adquiridos”. Ora este direito — para se tornar “direito adquirido” necessitará da transformação do definido provisório em definitivo — finou-se no final do prazo de oito anos em Novembro de 2017, estabelecido pela soma de cinco anos considerados na Lei n.º 31/2009 com os 3 anos definidos na Lei n.º40/2015. Ou seja, a situação provisória que permitia o direito de assinatura de projectos de Arquitectura foi eliminada para todos aqueles que não possuem — engenheiros incluídos — a necessária licenciatura em Arquitectura. E não vale a pena dizer-se da profunda injustiça que caía sobre os engenheiros que, podendo — como há quem goste de dizer — fazer projectos de Arquitectura no estrangeiro, não o podiam fazer em Portugal, no seu próprio país. Mas os engenheiros, pela conjugação das leis n.º 31/2009 e n.º40/2015, deixaram de poder assinar, em Portugal, projectos de Arquitectura desde Novembro de 2017, e deixaram também por força da Directiva invocada, de os poder assinar nos países comunitários — quem não assina no seu país de formação não pode assinar nos outros…
Mas foram ainda mais longe os 124 deputados que votaram favoravelmente o diploma: fizeram tábua rasa da existência das Ordens que, por aprovação — pasme-se! — da própria Assembleia da República, regulam, sem existência de pontos comuns, a expressão pública das profissões de Arquitecto e de Engenheiro.
Mas há mais desatenções: o diploma aprovado estabelece, pelo menos, duas situações de concorrência desleal: a possibilidade de apenas uma das formações realizar, na prática, a totalidade do projecto; à permissão aos engenheiros que projectam arquitectura de ficarem libertos, ao contrário dos arquitectos, da sujeição a qualquer código deontológico no domínio da Arquitectura.
De facto, autorizando os engenheiros civis — preparados para realizar projectos de estruturas e, eventualmente, de outras especialidade — a realizar projectos de Arquitectura, é—lhes também permitido, pelas sinergias criadas, reduzir custos. Ou seja: o conjunto de projectos que apresentam podem sempre ser mais baratos do que os apresentados por arquitectos que, aos seus, terão ainda de somar os custos referentes aos projectos de estruturas e especialidades e que são realizados por ... engenheiros civis.
Por outro lado, impondo a inscrição dos engenheiros civis que tenham iniciado os seus cursos até 1987 no Instituto Superior Técnico, Faculdade de Engenharia do Porto, Faculdade de Ciências e Tecnologia de Coimbra ou na Universidade do Minho e tenham visto um seu projecto de Arquitectura municipalmente aprovado entre 1de Novembro de 2009 e de 2017, no Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, IMPIC, obrigam a uma pergunta elementar: porque código deontológico se regerão? Sem esquecer que a responsabilidade deontológica que pende sobre o exercício da Arquitectura é exclusiva da Ordem dos Arquitectos, a resposta só pode ser uma: claramente por nenhum uma vez que o instituto onde terão que se inscrever não tem competências legais para tal. 
Destes dois aspectos vão ressaltar óbvios prejuízos para os utentes — porque a concorrência desleal tem sempre como resultado a desqualificação dos projectos a realizar — que são, em primeira instância, o povo português. Povo português que é suposto a Assembleia da República defender.
Mas não!
Apesar da pública demonstração de que a Arquitectura deve ser realizada por Arquitectos dada pelas três principais figuras da hierarquia política do país — Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e Primeiro-Ministro — a votação de 124 deputados da Assembleia da República considera que para exercer uma profissão — a de Arquitecto — não é preciso qualquer formação adequada e específica. O que é grave e inaceitável!  
Sem esquecer a incompreensão dos 25 votos favoráveis e das 12 abstenções do Partido Socialista — o paladino do retorno, em 2009, de Arquitectura por Arquitectos — “sem que se conheça facto novo que o justifique”, como frisa o Senhor Presidente da República na justificação ao seu veto, não aceito, pelo menos intelectualmente, a indignidade provocada na profissão Arquitecto — se podem ser substituídos por quem não tem formação adequada é porque a sua formação não vale grande coisa — como consequência da aprovação expressa.
Estou, clara e profundamente, desiludido, irritado até. Não só pelo óbvio prejuízo e desqualificação da profissão Arquitecto mas porque aquilo que esperei da Assembleia da República de um país democrático, de um Estado de Direito e que tive a possibilidade de, com alegria, já adulto e curso terminado, ver nascer, era, não a ignorância das consequências, mas — como factores essenciais da máxima expressão da vida democrática — a garantia do rigor e da responsabilidade em cada decisão tomada. E não foi isso a que assisti acontecer.   

Arquitecto nº 724, Membro eleito da Assembleia de Delegados da Ordem dos Arquitectos

* texto inicial que foi reduzido a 3499 batidas para poder ser publicado no Expresso

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