Expresso de 30 de Junho de 2018 |
Num misto de ignorância do veto presidencial — “alterando fundamentalmente uma transição no tempo para uma permanência da exceção, nascida antes do 25 de abril de 1974” — e urgência descabida do PAN, PCP e PSD, foi aprovado um novo diploma na Assembleia da República (AR) com 124 votos (80 do PSD, 25 do PS, 15 do PCP, 2 dos Verdes, 1 do CDS e 1 do PAN), permitindo que engenheiros civis — licenciados até 1987 em quatro distintas escolas portuguesas e que tenham tido um projecto de Arquitectura aprovado entre 2009 e 2017 — assinem projectos de Arquitectura.
Argumentaram então que a Directiva Europeia dizia isto e que o Provedor exigia aquilo. Nada! A Directiva 2005/36/CE estabelece que o detentor das condições para exercer a profissão de arquitecto num dado país comunitário tem, por elementar força da livre circulação, o direito ao reconhecimento mútuo em qualquer outro país membro da Comunidade Europeia. Para Freitas do Amaral, num parecer pedido pela Ordem dos Arquitectos: “A norma é de uma clareza meridiana: a Directiva aplica-se a quem, tendo obtido as suas qualificações num dado Estado-membro, pretenda exercer a correspondente profissão num outro Estado-membro. (…) Não pode ser invocada, pois, por quem pretenda exercer uma profissão no mesmo Estado-membro onde obteve as qualificações.”
A Recomendação do Provedor da Justiça, reclamando “uma clarificação urgente” por parte da “vontade parlamentar” e baseada na pretensão de “direitos adquiridos”, recomendou, não exigiu. Se assim não fosse não seria possível o teor do texto justificativo do veto presidencial. Aliás os referidos direitos finaram-se a Novembro de 2017, final dos oito anos do somatório de prazos da Lei n.º 31/2009 com a Lei n.º 40/2015. Mas 124 deputados, com a sua votação, transformam o estabelecido provisório num definitivo final. Apesar da evidência de quem não assinar no seu país não poder assinar nos outros…
E foram mais longe: fizeram tábua rasa da existência das ordens — aprovadas pela mesma AR — que regulam as profissões de arquitecto e de engenheiro.
Mas há mais! O diploma estabelece, pelo menos, duas situações de concorrência desleal: a possibilidade dos engenheiros realizarem a totalidade do projecto e, ao contrário dos arquitectos, verem-se livres da sujeição a um código deontológico no domínio da Arquitectura.
Realizar projectos de Arquitectura permite aos engenheiros civis, pelas sinergias criadas, reduzir custos e o conjunto de projectos que apresentam pode ser sempre mais barato do que o apresentado por arquitectos que, aos seus, terão de somar os custos dos projectos de especialidades realizados por engenheiros civis.
Impor a inscrição dos engenheiros civis no Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, IMPIC, suscita uma pergunta: por que código se regerão se a responsabilidade deontológica que pende sobre o exercício da Arquitectura é exclusiva da Ordem dos Arquitectos?
Estes aspectos trazem óbvios prejuízos — a concorrência desleal resulta sempre na desqualificação das acções — para os utentes que são o povo português, supostamente defendido pela AR.
A pública afirmação, pelas três principais figuras da hierarquia política — Presidentes da República e da Assembleia e Primeiro-Ministro — de que a Arquitectura deve ser realizada por arquitectos não colheu na votação de 124 deputados que consideram assim que a profissão de arquitecto não necessita de qualquer formação adequada e específica.
“Sem que se conheça facto novo que o justifique”, como frisa o texto presidencial, não compreendo ainda os 25 votos favoráveis e as 12 abstenções do PS — o paladino, em 2009, da Arquitectura por Arquitectos — e acuso, indignado, a consequência da aprovação: se podem ser substituídos por quem não tem formação adequada é porque a sua formação não vale grande coisa.
Estou profundamente desiludido, irritado até. Pelo óbvio prejuízo e desqualificação da profissão de arquitecto e porque esperei da AR de um Estado de Direito que tive — adulto, licenciado e com alegria —a possibilidade de ver nascer, a garantia do rigor e da responsabilidade em cada decisão. E não foi a isso que assisti acontecer. * publicado no Semanário Expresso em 30 de Junho de 2018
ver texto inicial aqui