O Desporto português precisa de uma profunda reformulação. Porque tem poucos atletas e resultados fracos. E não porque sejamos poucos - na Europa somos um país de média população, estando na 13a posição entre os 47 países europeus - mas sim porque o nosso sistema desportivo está desfasado do tempo e do espaço daqueles com quem nos comparamos. Começando logo pelo nosso muito reduzido número de atletas federados...
O sistemas desportivo português, pode dizer-se, sofre da Síndrome da Alice: tem dificuldades em saber onde está e não parece saber para onde quer ir. Porquê? Porque vive de misturas e confusão de conceitos. No fundo, o sistema desportivo português traduz a iliteracia desportiva em que fomos educados apimentada pela memória do orgulhosamente sós de antanho que nos retira lucidez de análise sobre o que nos envolve e nos atira para a elaboração teórica numa procura de conhecimento desfasado e que não cuida do saber das práticas.
O sistema desportivo português não tem qualquer estratégia definida que permita às suas diferentes organizações saberem o caminho a percorrer e os objectivos a atingir. Vivendo ao sabor de ventos e marés, o Desporto português vê- se confrontado, sem um rei ou um roque que o proteja, com medidas ora desajustadas - algumas delas violadoras dos direitos e da dignidade humanas - ora desfocadas para as capacidades que temos e para a realidade que somos. Que fazer?
Por onde começar?! Por atacar as confusões - algumas semânticas, outras comportamentais - que, aumentando o ruído, minam o Desporto. O Desporto é para todos? Não! É para quem pode e dentro destes será para quem quer. O Desporto dá saúde? Não, o Desporto é para quem tem saúde - por isso, para a sua prática, se exigem exames médicos. O que é isso então de Desporto? É superação, é a procura do melhor resultado comparado no nível internacional, é a procura de limites enquadrada na ética desportiva e nas regras e regulamentos das diversas e diferentes modalidades. Desporto é o caminho do Olímpo.
Correr numa pista à procura do melhor tempo na luta comparada com outros atletas é diferente de correr no paredão com vista para o mar e com o propósito de manter uma boa condição e um saudável modo de vida. Actividade Física é o caminho do bem-estar.
E aqui, em Portugal, temos a designação legal de Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto. Quer dizer: legalmente, estabelecem-se dois domínios diferentes. Diferença a que ninguém parece ligar seja o que for. Distinção que não se faz e não parece pretender-se, deixando entender o Desporto como o espaço do tudo o que mexe, qualquer coisa a que todos - como é possível?! - temos direito. Porquê? Porque é mais fácil - junta-se um punhado e faz-se uma actividade que se propagandeia aos sete ventos, tudo de braços no ar, como de enormes melhorias desportivas, reduzindo o mundo competitivo ao espaço do vizinho; junta-se uma malta, faz-se uns treinos e, como os resultados não contam, somos todos altamente competentes; porque é economicamente mais rentável para os interesses envolventes.
Neste faz-de-conta, esquecemo-nos que Desporto é uma coisa e que Actividade Física é outra e que, para a melhoria do Desporto português, urge esta decisiva separação de conteúdos e formas. Que já existe na denominação da Lei...
A qualidade do Desporto mede-se pelos resultados comparados obtidos, a qualidade da Actividade Física pela quantidade de acções realizadas e pela quantidade de utências que integra. No primeiro campo vivem os atletas, no segundo os praticantes. Em dois mundos paralelos que apenas se assemelham nas aparências.
E esta divisão - Desporto/ Actividade Física - proporcionará o desenvolvimento ganhador das duas áreas, num win-win de melhoria de resultados desportivos e de um maior interesse pela prática da actividade física - com a consequente melhoria das condições de vida e saúde da generalidade da população. Possibilitando então que as Federações Desportivas se dediquem, sem desperdiçarem o seu tempo e energias em actividades marginais, à sua mais importante missão: criar as condições necessárias que permitam que os seus atletas possam competir em condições de igualdade com atletas de outros países. Para o que também se deve possibilitar que as Federações desportivas de índole "amadora" possam, à semelhança das "profissionais", separar internamente o Desporto de Rendimento - de onde vêm os atletas para as selecções nacionais - do Desporto federado de características mais lúdicas. Ou seja: que o Desporto de Rendimento não tenha que carregar a pesada mochila dos interesses do Desporto à porta de casa - porque são e devem ser, dois mundos distintos.
Outra alteração decisiva para o desenvolvimento e melhoria do Desporto português trata da mudança, na forma e no conteúdo, daquilo que designamos por Desporto Escolar, integrando-o no percurso de formação dos atletas, aproximando-o dos clubes e do apoio das Câmaras Municipais ao estabelecer um triângulo - Escola, Clube, Câmara Municipal - que tratará do Desporto em Idade Escolar, evitando assim as especializações precoces federadas com desistências também precoces que o actual modelo desportivo incentiva. Ao contrário, este Desporto em Idade Escolar possibilitará uma formação desportiva multidisciplinar que permitirá a eclosão e detecção de talentos e diminuirá, pelo aumento de oportunidades, o número de excluídos ou auto-excluídos. E, simultaneamente e com programas capazes, criará a desejada habituação à prática da Actividade Física que se pretende válida para o resto da vida.
Resumindo: os passos a incrementar para o desenvolvimento desportivo português exigem, de imediato, a separação, definindo dois campos distintos, do Desporto - onde caberão as Federações Desportivas de Utilidade Pública - da Actividade Física onde caberão toda a sorte de associações que pautam o seu interesse pelos aspectos lúdicos e de lazer do melhoramento da condição física como contributo para a melhoria da saúde física e psíquica do corpo humano; um outro entendimento do Desporto Escolar, integrando-o na área de formação do sistema desportivo e alargando os seus horizontes para um Desporto em Idade Escolar; e, finalmente, colocar no centro das preocupações do Desporto, não os variados interesses que o dominam, mas o Atleta, a sua formação e preparação, a sua carreira e o seu pós-carreira e procurando nas Universidades o apoio científico necessário ao desenvolvimento do seu rendimento competitivo.
(publicado no 29º aniversário do jornal desportivo O Jogo)