sexta-feira, 16 de maio de 2014

Martim Moniz, Uma Praça de Lisboa

Há dias participei com a Daniela Ermano no colóquio Conversas da Mouraria organizado pelo Grupo Amigos de Lisboa. Tinham-nos pedido que fizessemos uma intervenção sobre o projecto que ambos realizaramos para a Praça Martim Moniz. Resolvi ler o texto - abaixo reproduzido - que escrevera para o Congresso Mundial da Federação Internacional para a Habitação, Urbanismo e Ordenamento do Território em 1998.
Antes e naturalmente passei na Praça e fiquei chocado com o que vi de "montagens" que por lá se fizeram sem qualquer nexo ou respeito pela geometria do desenho projectado - mudanças existem sempre e, se feitas com o respeito devido ao espaço definido pela geometria do lugar, podem tornar-se - no que não é obviamente o caso - num valor acrescentado. Isto sem falar na pecha de já longa duração que é a falta de manutenção, a falta de alimentação das árvores que seria suposto criarem uma esplendorosa barreira visual em cortinas densas e luxuriantes ou a falta da água que jorra sabe-se lá quando corre - a "fonte da estrela" está preparada para "dar as horas". Enfim, uma tristeza!
O texto lido aqui fica:

MARTIM MONIZ, UMA PRAÇA DE LISBOA
Em tempos, foi um esteiro do Tejo por onde terá chegado, guiada por dois corvos, a barca com as relíquias do mártir São Vicente, hoje padroeiro e simbolo de Lisboa. Nos terrenos drenados ao tempo manuelino. foi aí, no inicio do sec.XVI. construida por temor da peste, da fome e da guerra, a igreja de S. Sebastião da Mouraria que, em 1561, mudaria para o actual nome de Nossa Senhora da Saúde. Em 1646, nascia com a igreja do Socorro, a freguesia do mesmo nome.
Séculos antes por aí passou o troço da muralha fernandina que ligava a colina do Castelo à de Sant'ana, definindo o limite da cidade de que resta a memória de um cubelo ao cima da escadaria do Jogo da Péla, e de que se pode perceber a localização cartografada pelo correr da rua denominada. a partir de 1915, de Martim Moniz.
Nos anos quarenta deste século e como resultado da abertura. em 1903 e na sequência da já tradicional ligação entre a cidade e os seus arrabaldes, da Avenida D. Amélia - hoje Almirante Reis - iniciou-se, embora com algum propósito de bons costumes, um processo de demolição em larga escala justificado na necessidade de articular este eixo estruturante de desenvolvimento urbano com a Baixa Pombalina. A igreja do Socorro, o Teatro Apolo e o palácio do Marquês de Alegrete - este já muito deteriorado pelo terramoto de 1755 - foram alguns dos edificios notáveis demolidos.
Ao mesmo tempo que o espaço livre aumentava, o nome de Martim Moniz alargava a sua esfera de influência. A ponto mesmo da Câmara, que nada fizera para oficializar esta dimensão do desejo popular, referir em reunião de 15 de Novembro de 1946, o Largo de Martim Moniz.
De então para cá, não faltaram tentativas de solução sobre o espaço assim vazio. Da memória de sempre ficaram a Igreja da Saúde, as encostas envolventes e a visão tutelar do castelo. Dos diversos planos tentados - o último nos anos 80 - fica a memória visivel dos edifícios dos centros comerciais e a pedonalização da rua da Mouraria.
Foi sobre este espaço vazio. sobre este espaço residual de encontro de tecidos urbanos de várias procedências, de diversas formas ou lógicas de utilização, de transformação e de apropriação que nos foi dado intervir: a nascente, a Mouraria originária de uma ocupação medieva extra-muros; a poente, o traço pré-pombalino da colina de Sant'ana; a sul, a racionalidade da Baixa Pombalina; a norte, a avenida Almirante Reis, contraponto pobre ao boulevard da Avenida da Liberdade.
A vista do castelo, o nome mitológico do guerreiro, a visão romântica da tomada de Lisboa, a imagem das margens do esteiro transformadas em campo de lutas atravessado por cavaleiros de armadura e lança, a conquísta, os mouros, as muralhas com a suas passagens, arcos e postigos de acesso, os nomes de João Peculiar, de Pedro Pitões, Fernão Cativo, Paio Delgado ou Pedro Plágio que, à volta do Conquistador, se juntavam ao nome mitológico do guerreiro mártir, formam o imaginário medieval popular traduzindo o espirito do lugar onde, nós projectistas, nos iremos mover.
Em termos de desenho urbano e partindo da necessidade programática de criar um novo parque central de estacionamento, três novos problemas a resolver: a articulação do desenho da praça com o eixo da avenida Almirante Reis, a integração visual dos edifícios recentemente construídos e a defesa acolhedora - fisica e visual - do espaço-ilha rodeado de vias de tráfego intenso.
Impondo-se o valor de uso ao valor de troca subjacente a planos anteriores, surge como objectivo prioritário a criação de um espaço de paragem, de encontro, de estar, de relação e lazer suficientemente protegido e enfático da memória do sitio e do espirito do lugar.
Decidimos assim, dividir a praça em três zonas:
a) na 1ª, tendo como preocupação articular os eixos da nova praça com a avenida e estabelecer uma relação integradora na envolvente urbana;
b) na 2ª, procurando através de um comércio especial e de qualidade. atrair as pessoas ao seu interior;
c) na 3ª. criando um clima lúdico que possibilite tempos dinâmicos de distracção.
Para resolver os problemas criados pela intensidade do tráfego e enquanto cortina de salvaguarda visual e articulação com a escala envolvente dos edifícios mais modernos, decidimos rodear a praça de revestimento arbóreo denso e elevado.
Quem chega pela Almirante Reis ao Martim Moniz. encontra um primeiro espaço de paragem numa estrela, numa rosa dos ventos, que constitui uma placa giratória capaz de inflectir um eixo e, na leveza dos seus jogos de água, relacionar e articular a escala urbana com a redução necessária ao conforto de quem passeia.
Na parte central. criando a atracção necessária para a frequência de uma população exterior às zonas envolventes e para o entretenimento dos utentes habituais, um conjunto de quiosques destinados à venda de artesanato qualificado desenha pequenos pátios a que as laranjeiras darão a sombra para um tempo de espera a que os bancos convidam.
A água lançada dos repuxos de um caneiro central que acentua a simetria do espaço, trará, nos quentes fins-de-tarde de verão, uma frescura convidativa ao sabor de quem está. dos grupos, das conversas ou da solidão procurada para leitura de um livro ou de um jornal. A envolvente de árvores e arbustos dará - logo que o seu tempo de crescimento se adapte á dimensão esperada - o conforto, a protecção e a intimidade que este espaço-ilha necessita para se autonomizar.
Logo a seguir, três degraus para entrar num espaço que aborda, com ironia, a mitologia histórica das proximidades do sítio. Um muro-muralha, vaga impressão fernandina e onde guerreiros - de bandeiras colocadas ao alto e engalanados de românticas plumas ao vento - parecem perfilados na perenidade da recordação de conquistadores, dá o tom à plasticidade de uma outra praça.
Uma porta entreaberta - marcando a direcção das lescadarias das encostas opostas - um machado enorme jorrando das suas marcações um labirinto de águas de que a miudagem foge e, pelo sim, pelo não, guardiões - companheiros de Osberno? eventualmente templários - tomando conta, não vá o diabo tecê-las!, das passagens-pontes sobre a água borbulhenta de mistérios insondáveis.
Lá ao fundo, no limite que obriga ao retorno, restos marcantes da cultura vencida que, por tantos anos quantos os que chegam atá hoje. continua a jorrar marcando a vida e os passos do ser português. A esta cultura dum sul tão próximo juntam-se pequenas influências das sete partidas do mundo que demandamos em quinhentos.
É assim: uma praça espaço de paragem, de lazer, feita de percursos com lembranças à frescura das árvores e do correr da água. Um espaço de divertimento.
João Paulo Bessa, arq.º
      texto escrito para o 44º Congresso Mundial da FIHOUT
 (Federação Internacional para a Habitação, Urbanismo e Ordenamento do Território)
Lisboa, 13 a 17 de Setembro de 1998

Autoria do Projecto:
Daniela Ermano, arquitecta
João Paulo Bessa, arquitecto
Gonçalo Ribeiro Teles, arquitecto paisagista


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